domingo, 29 de março de 2020

ainda a queda do céu



oi, mãe te escrevo do norte, tô na amazônia
na vinda cruzei o interior do ceará
e passei em frente um rio chamado chorozinho
parece uma metáfora tão triste pra estes tempos
sei que não é boa hora pra falar de tristezas
que deveria te escrever e acalmar seu coração de mãe
que é importante amar e rir e gozar e espalhar flores
eu lembro a vendedora de flores que você foi
ainda sinto o cheiro das roupas da lavadeira que você foi
lembro o cheiro gostoso da doceira que você foi
sim eu sei que a alegria é uma resistência eu sei sim
mas mãe, eu fico aqui olhando as rasuras
eu conto doismilidezenove três anos de golpe
quinhentos e dezenove anos de golpe
eu ouvi aqui que cada dormente é uma alma
dormente, mãe, são aqueles paus que ficam debaixo 
dos trilhos das ferrovias e os indígenas iam à noite arrancar
os dormentes porque a estrada de ferro era construída
em suas terras e então os donos do poder colocavam coisas 
pra dar choques nos indígenas e de manhã 
eles estavam agarrados nos dormentes 
todos mortos 
cada dormente uma alma, mãe
e agora eu te escrevo essa cartinha e tem uma tv ligada
e o governador tá falando de boca cheia que precisam desapropriar 
as terras indígenas porque eles não plantam e as pessoas precisam comer 
e ele tem sangue nas mãos e no bigode, mãe
os padres e as caravelas de há quinhentos e dezenove anos 
são a bancada evangélica e da bala de hoje 
ah sim, mãe vou te contar uma coisa bonita
um feitiço indígena os cabelos de betânia o cheiro dos cabelos de betânia
todas essas mulheres juntas e nadando fundo contando suas histórias
e foi muita sorte eu ter conseguido ver o rio madeira porque 
a construção da hidrelétrica fez tudo desbarrancar 
não seria mesmo lindo se o rio lavasse tudo, mãe?
*

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