domingo, 28 de abril de 2013

LOKASEANNA, UM OUTRO


W. G. Collingwood (William Gershom Collingwood, inglês, 1854-1932). Loki zomba Bragi/ Loki taunts Bragi, 1908. Ilustração para o poema 'Lokaseanna/ Lokasena', do "Edda em verso", compilado no século XIII a partir de fontes tradicionais, por Snorri Sturluson.  

“É tão doce a insanidade.
Tão doce ser outro.
Tão doce poder dizer-se. Desdizer-se.
Tão doce.
Nada doce é ser enclausurado, cápsulas, almofadas, classificações. E você é isto, aquilo o outro.
Doce é inexistir. Dizer-se sem saber-se.
Escrever as palavras repetidas, misturar os tempos e as pessoas, iniciar um texto sem congruência com o todo porque não me manda a linguagem, não ela, ela que me permite e ó, por ela cá estou.” – A.J.


Não dei por mim o início disso. É tão difusa a lembrança de nossa primeira correspondência que poderia contar três histórias diferentes, todas verdadeiras. Mas sei que não tinha desejos físicos, materiais ou de qualquer ordem. Ele veio até mim, sim, tenho a certeza disso, ele quem veio primeiro a falar-me.


Eu tinha essa caixa postal em nome de Manoela que era uma experimentação poética, linguística e muito autista, sem qualquer interesse prolongado no outro, muito embora o outro sempre ter me fascinado. Então ele dizia nada com nada, queria-me crê-lo um ‘listo’, um eusououtro, um eumaiorquetudo.


É verdade que ele me enfadava quase todo o tempo com suas cópias de cineastas italianos, pensadores franceses e o nada-com-nada, mas o lia com determinado interesse: isto significava ter de responder de outro lugar, pensamento, língua, corpo. Isto fazia de mim um eu muito mais profundo, a buscar dentro da linguagem o que ela mesma jamais poderia nos oferecer.


Era muito conveniente que ele não me pedisse o telefone, mas só conjecturasse “sua voz é mais para grave”. Como não, senhor, gravíssima como meu nascimento, uma mentira. Eu lhe dizia tanto ao evadir-me que só mesmo um sujeito com os mesmos propósitos – criar um eu muito mais profundo – para não perceber os embustes, tamanho afundamento no próprio ego. Não me importava e me convinha que não pedisse telefones, não quisesse uma visita – e eu sabia que não podia, que sua mulher tão linda, tão sua, estranharia – e nos mergulhava em abstrações.


Mas eis que um dia sucumbi ao eu mais raso, deixei-me inebriar do falso porto que era californiano e entregar meu corpo em histeria. Eu sabia que era algo como mentira, que não estava a separar-se de uma história linda convertida num pântano: eu lia suas cartas abertas à mulher tão linda, tão sua, tão doce como a insanidade; mas acreditava que isso não era uma mentira, que o encontro da minha e a sua cicatriz em nada afetava a mulher tão linda, tão sua e não, ela não tinha nada conosco, um casal tão falso quanto meu porto, tão verdadeiro quanto essas linhas.


Sucumbimos e amamos a carne, essa que não se desgosta e não se esgota. Não. Eu sucumbi tão mais às veredas de mim, que precisava dizê-lo não é isto é tudo mais que tanto. Não podia aceitar seu caderninho bordado com os dedos dos pés e sua palestra dos disparates da arte contemporânea, a província em chamas. Mas não é hoje, Snorri, não hoje, que tivemos e dividimos esse dia lindo de vindimas. Sim, Manuela, foi um dia lindo.


Tomei emprestada de Sá-Carneiro a canção e no dia seguinte entreguei-lhe minha voz sem sotaque nem mais nada. Riu-me, disse-me a criatura mais merecedora do asco universal. Fraca, fraca! Muito mais que o amor dando bandeira. Eu sinto muito, agonizava

poderíamos recomeçar tudo
eu não pensaria em dizer
ao outro, que é outra
- as verdades exigidas como
qualquer verdade e o que é
mesmo a verdade?

diria, sou de junho
não sou estrábica. talvez, talvez...
sim, a boca levemente torta
aos mais atentos. sim
a cicatriz no lábio inferior
e as três histórias que dela se deslindam

vivo onde não chove, nem é frio
um lugar que guardasse suas lembranças
as mais puras e áridas

não obstante, reiterava tudo o mais
o esvaziamento, ausência, inabilidades 
de mim. multiplicando esse desejo latente
um eu sanguidolente. e desde há tanto
a espera. medonha espera
o encontro da tua e a minha cicatriz.

Não sinta, eu não sinto nada, dizia como se no lindo dia anterior tivesse jogado dados com mendigos.

Nunca mais lhe escrevi. Deixei morrer essa lembrança com o gosto amargo do homem que prefere uma mulher tão linda, tão sua, aristotélica. E chegou o tempo de retomar antigas correspondências do meu ofício e tudo era tão claro e cristalino: meu projeto era muito mais dele, mas o dele calcado em alguém real. Enquanto eu me buscava os outros que me habitam, as superpossibilidades da linguagem e meus infernos mais profundos, ele se criava a partir de um outro-outro, tão linda, tão sua.


O grande embuste, a suma revolta consistia no fato de que a minha mentira revelava a sua, tão mais torpe. Que seus cadernos não eram seus, o nada-com-nada desaguava o sangue dela. Ele não era outro senão ela. Amava tanto essa mulher, parece-me, que a tomou para si como a sendo.


Não concordo que tenha enlouquecido, responder-me por Ana, Diana ou Flórida, não faz de mim louca, fraca, tanto mais chamasse Luanda, Manoela. O que é um nome? Mas não é difícil, todavia, nesses tempos de penúria  trancafiar uma mulher com provas escritas de sua transubstanciação.


Pela fresta posso vê-lo a encantar as moças com as histórias que tece com os dedos dos pés a mulher tão linda, tão sua, à hora mais escura do amor. Elas se deixam dançar, fraquejar, todas Manuelas. Ele, Lothur.

2 comentários:

Vais disse...

fui fundo
beijos

Carla Diacov disse...

Lindona! Locona linda! Pomba loca!