W. G. Collingwood (William Gershom Collingwood, inglês, 1854-1932). Loki zomba Bragi/ Loki taunts Bragi, 1908. Ilustração para o poema 'Lokaseanna/ Lokasena', do "Edda em verso", compilado no século XIII a partir de fontes tradicionais, por Snorri Sturluson.
“É tão doce a insanidade.
Tão doce ser outro.
Tão doce poder dizer-se. Desdizer-se.
Tão doce.
Nada doce é ser enclausurado,
cápsulas, almofadas, classificações. E você é isto, aquilo o outro.
Doce é inexistir. Dizer-se sem
saber-se.
Escrever as palavras repetidas,
misturar os tempos e as pessoas, iniciar um texto sem congruência com o todo
porque não me manda a linguagem, não ela, ela que me permite e ó, por ela cá
estou.” – A.J.
Não dei por mim o início disso. É tão difusa a lembrança de
nossa primeira correspondência que poderia contar três histórias diferentes,
todas verdadeiras. Mas sei que não tinha desejos físicos, materiais ou de
qualquer ordem. Ele veio até mim, sim, tenho a certeza disso, ele quem veio
primeiro a falar-me.
Eu tinha essa caixa postal em nome de Manoela que era uma
experimentação poética, linguística e muito autista, sem qualquer interesse
prolongado no outro, muito embora o outro sempre ter me fascinado. Então ele
dizia nada com nada, queria-me crê-lo um ‘listo’, um eusououtro, um
eumaiorquetudo.
É verdade que ele me enfadava quase todo o tempo com suas
cópias de cineastas italianos, pensadores franceses e o nada-com-nada, mas o
lia com determinado interesse: isto significava ter de responder de outro
lugar, pensamento, língua, corpo. Isto fazia de mim um eu muito mais profundo,
a buscar dentro da linguagem o que ela mesma jamais poderia nos oferecer.
Era muito conveniente que ele não me pedisse o telefone,
mas só conjecturasse “sua voz é mais para grave”. Como não, senhor, gravíssima
como meu nascimento, uma mentira. Eu lhe dizia tanto ao evadir-me que só mesmo
um sujeito com os mesmos propósitos – criar um eu muito mais
profundo – para não perceber os embustes, tamanho afundamento no
próprio ego. Não me importava e me convinha que não pedisse telefones, não
quisesse uma visita – e eu sabia que não podia, que sua mulher tão linda, tão
sua, estranharia – e nos mergulhava em abstrações.
Mas eis que um dia sucumbi ao eu mais raso, deixei-me
inebriar do falso porto que era californiano e entregar meu corpo em histeria.
Eu sabia que era algo como mentira, que não estava a separar-se de uma história
linda convertida num pântano: eu lia suas cartas abertas à mulher tão linda,
tão sua, tão doce como a insanidade; mas acreditava que isso não era uma
mentira, que o encontro da minha e a sua cicatriz em nada afetava a mulher tão
linda, tão sua e não, ela não tinha nada conosco, um casal tão falso quanto meu
porto, tão verdadeiro quanto essas linhas.
Sucumbimos e amamos a carne, essa que não se desgosta e não
se esgota. Não. Eu sucumbi tão mais às veredas de mim, que precisava dizê-lo
não é isto é tudo mais que tanto. Não podia aceitar seu caderninho bordado com
os dedos dos pés e sua palestra dos disparates da arte contemporânea, a
província em chamas. Mas não é hoje, Snorri, não hoje, que tivemos e dividimos
esse dia lindo de vindimas. Sim, Manuela, foi um dia lindo.
Tomei emprestada de Sá-Carneiro a canção e no dia seguinte
entreguei-lhe minha voz sem sotaque nem mais nada. Riu-me, disse-me a criatura
mais merecedora do asco universal. Fraca, fraca! Muito mais que o amor dando
bandeira. Eu sinto muito, agonizava
poderíamos recomeçar tudo
eu não pensaria em dizer
ao outro, que é outra
- as verdades exigidas como
qualquer verdade e o que é
mesmo a verdade?
diria, sou de junho
não sou estrábica. talvez, talvez...
sim, a boca levemente torta
aos mais atentos. sim
a cicatriz no lábio inferior
e as três histórias que dela se deslindam
vivo onde não chove, nem é frio
um lugar que guardasse suas lembranças
as mais puras e áridas
não obstante, reiterava tudo o mais
o esvaziamento, ausência, inabilidades
de mim. multiplicando esse desejo latente
um eu sanguidolente. e desde há tanto
a espera. medonha espera
o encontro da tua e a minha cicatriz.
Não sinta, eu não sinto nada, dizia como se no lindo dia
anterior tivesse jogado dados com mendigos.
Nunca mais lhe escrevi. Deixei morrer essa lembrança com o
gosto amargo do homem que prefere uma mulher tão linda, tão sua, aristotélica.
E chegou o tempo de retomar antigas correspondências do meu ofício e tudo era
tão claro e cristalino: meu projeto era muito mais dele, mas o dele calcado em
alguém real. Enquanto eu me buscava os outros que me habitam, as superpossibilidades
da linguagem e meus infernos mais profundos, ele se criava a partir de um
outro-outro, tão linda, tão sua.
O grande embuste, a suma revolta consistia no fato de que a
minha mentira revelava a sua, tão mais torpe. Que seus cadernos não eram seus,
o nada-com-nada desaguava o sangue dela. Ele não era outro senão ela. Amava
tanto essa mulher, parece-me, que a tomou para si como a sendo.
Não concordo que tenha enlouquecido, responder-me por Ana,
Diana ou Flórida, não faz de mim louca, fraca, tanto mais chamasse Luanda,
Manoela. O que é um nome? Mas não é difícil, todavia, nesses tempos de
penúria trancafiar uma mulher com provas escritas de sua
transubstanciação.
Pela fresta posso vê-lo a encantar as moças com as
histórias que tece com os dedos dos pés a mulher tão linda, tão sua, à hora
mais escura do amor. Elas se deixam dançar, fraquejar, todas Manuelas. Ele,
Lothur.
2 comentários:
fui fundo
beijos
Lindona! Locona linda! Pomba loca!
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