euzinha no provador de uma loja experimentando esse lindo vestido que nunca irei comprar, só pra fazer essa foto de fim de ano! :))
eu gosto de fazer retrospectivas.
lembro de quando eu era bem pequena e meu pai contava causos bíblicos que não tinham nada a ver com a gente; minha mãe tentava tatear seu próprio passado sem poder contar com nada além de uma memória fragmentada por traumas.
depois, quando comecei a escrever, fazia listas dos livros que li durante o ano como uma forma de lembrar meus caminhos junto das leituras e tudo o mais que acontecia fora do mundo que era meu ideal.
hoje, na verdade há uns três anos, eu já posso fazer minhas restropectivas a partir de coisas que ‘realizei’ durante o ano.
a maioria das traduções que fiz e que foram publicadas este ano, foram feitas no ano passado e até bem antes; assim como meu livro "Elza" que escrevi em 2021-22 e mesmo os eventos e textos que publiquei em sites e revistas não foram concebidos esse ano; é preciso tanto pra se escrever...
quer dizer, “há o tempo de plantar e o tempo de semear”, ou ainda “quem vê close, não vê corre”. ou como disse Conceição Evaristo, num dos melhores momentos que vivi este ano "quem vê a gente vendendo livro hoje, acha que a gente nasceu no glamour".
portanto, camarades, sem julgamentos, estamos plantando ;)
minhas retrospectivas foram de realizações, embora voltando para o mundo (sim, é o mundo de diversas maneiras e em diversas dimensões que me possibilita “fazer”).
não foram reflexões, digamos, mais espirituais, sentimentais ou “essenciais”.
venho de uma família e de um tempo onde fazer análise é um ~luxo~ e a verdade é que tudo que fazemos, seja na vida pública ou privada, está totalmente intrincado.
“mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha/ porque eu sou um rapaz latino-americano/ que também sabe se lamentar.”
esse ano eu engordei 15 quilos!
no segundo semestre tive uma misteriosa infecção nos olhos que se estendeu por muito mais tempo do que imaginávamos eu e a equipe médica; quando voltava de uma viagem à SP no início desse mês tive covid e alguns sintomas (ó, meu pai, não vamos dizer sequelas) ainda passeiam pelo corpo, especificamente uma estranha dor nos pés.
“quem vê close, não vê corre”, risos.
eu acredito que isso tenha a ver com os anos de pandemia, quando não sai de casa nem pra fumar um cigarro e me enfiei no trabalho como se fosse minha tábua de salvação (além, é óbvio, daquele medo que todas as pessoas que foram muito pobres têm de voltar à miséria material. dizer não é algo muito difícil quando você é uma mulher negra, periférica, mãe-solo e podem nunca mais te oferecer trabalho e aí lascou).
e depois, findada à quarentena, lidei com o fim de um longo relacionamento, mudança de trabalho, mudança de casa, questões familiares, pessoas que amo com inúmeros problemas de saúde mental e tentando abreviar suas vidas… lidei com tudo isso com a força descomunal do meu orì e: trabalhando muito - parece coisa de maluco, mas sim, o trabalho me centra e me torna à mim.
então, eu acredito que isso aconteceu com meu corpo - o alargamento, as doenças respiratórias e dos olhos, como um abracadabra que me diz: hey, olha pra dentro, mulher!
e eu tô olhando, olhando bem muito. daqui de dentro já até fiz pela primeira vez minha resolução de fim ano:
fazer pilates, yoga e natação
meditar
ficar mais quieta
não consumir substâncias que sei que me fazem mal.
que seja um bom lugar, esse lugar que não conhecemos mas que estamos plantando, o futuro.
dia desses conversava com minino que me disse com cara de bocó “estava pensando nas coisas que você perdeu”.
por estes dias também conversava com um editor e amigo e ele disse “vc não sabe o quanto me fez bem te ouvir. resgatar a esperança que a gente pode se sentir em paz mesmo com tudo ao redor acontecendo”.
e embora tantas coisas perdidas no fogo, embora tanto afogamento (palavra bunita), me sinto com o corpo tão aberto (e fechado).
sou uma pessoa muito aberta pra sorte.
sorte não é privilégio, não é agência, não é direito.
também já escrevi pra minino: “sorte. que os caminhos estejam abertos. dádiva. que se chover eu fique molhada y se o sol torar os cornos que estejamos aquecidos… a verdade é que sou uma pessoa aberta pra sorte.”
tenho a sorte, por exemplo, de conseguir escrever, até no meio do fogo e da água toda.
a sorte de ter conseguido alcançar línguas, quando na infância/ adolescência, parecia a coisa mais distante do mundo e reservada a raras pessoas ~por herança~ divina, ou de classe/ raça/ gênero, ou whatever, imagina tudo junto.
sei que tive sorte de atravessar uma bolha quase instransponível e que isso não se deve apenas ao meu estudo, trabalho e esforço: óura, tanta gente estaria aqui agora, mas não estão.
*
um dos maiores aprendizados que tive durante o processo de leitura/ tradução deste livro foi sobre a “voz” - se vivo e convivo em ambientes e com pessoas específicas; se tenho minha maneira única de pensar e agir no mundo, é evidente que minha “voz”, será única.
nos quinze contos desse livro, podemos perceber a voz própria de toni cade bambara dando unidade ao livro, ao mesmo tempo que cada voz narradora, em cada um dos contos, é única, por mais que tenham semelhanças sociais ou até psicológicas.
aprendi, como um reconhecimento, que nossas condições não nos determinam e não devemos ser vistas ~apenas~ como sujeitas da coletividade (“o mundo-dentro é tão real quanto a execução de kadafi” escrevi na “duração do deserto”).
e ainda que, ao narrar, mesmo com toda implicação social, um fato que existe e ponto; junto dos mundos-dentro, junto de algo tão único. parem de nos matar e de nos definir: não queremos e nem precisamos de suffering-porn (“o tecido de nossa pele não é nosso único orgão”, diz marcelo ariel; e bell hooks “não é só minha pele que me define”; e meu irmão poderia ter dito “estou preso, não sou preso”).
somos únicas, únicas. e maravilhosas, produzindo, fazendo e acontecendo. em coletividade.
*
(depois de toni cade bambara)
aquele tipo de mulher
que atravessa o delta
esgarça poemas meu bem
arregalase meu bem
goza junto meu bem
sangra junto meu bem
estou sangrando meu bem
e é água encarnada like dark
e é una montana
e é una playa
mango leaves meu bem
lambo meus lábios
atravesso o delta
sangro junto meu bem
nessa onda nessa onda
de calor meu bem
de va gar de va gar
soy una gorila meu bem
*
é tanta coisa, que não caberia nunca post, por mais que me ilumine.
quem é a melhor mãe do mundo? para cada criança sua própria mãe; para mim todas (ou quase)! mas essa Mamma Bird é mesmo muito especial, ainda mais ouvindo assim, da sua cria! 🧚🏿♀️
"Minha mãe é a melhor mãe do mundo! / Quando eu digo isso assim, de supetão, todo mundo duvida, / tiram onda comigo, entram em arenga..."
quem ou quê seria a melhor mãe do mundo?
a minha, a sua? algo escrito e jamais sido?
pra maioria das crianças são as suas sim, não importa como sejam ou como a sociedade espera que elas sejam. lembro muito de quando iniciei minha jornada como mãe e, cheia de culpas e incertezas, minha sábia amiga @robertasilvapinto me aconselhava: “calma, quer saber se tá acertando? é só ver sua filha tá feliz” <3 porque obviamente até quando a pequena dormia na rede da praia tinha gente pra dizer que: ó que mãe horrível.
obviamente esse livro não é apenas sobre frufru, não sobre “lugar comum”, não é mela-cueca, risos. é um livro que toca em privações, mas reflete muito mais sobre nossa comunidade de afetos, sobre se movimentar e, mais que uma maternidade, uma vida em que acredito: comunitária, livre.
quero muito, muito, que crianças e pessoas de todas as idades, gente de toda a idade e todo canto, leia esse livro. talvez a coisa escrita mais bonita que já fiz, e que ganhou uma nova vida e novo sentido, aliás deu sentido à comunidade, com as ilustrações de @veriscarpelli🧚🏿♀️
digo sem medo de exagero: o livro mais incrível que escrevi está vindo ao mundo! meu primeiro livro infantil! 🥳
gracias, eternas gracias a todes que acreditaram e fizeram possível. olive, como diz a minha cria 🖤
traduzi os três poemas fabulosos abaixo para o 7º número da revista despacho editada pela corsário-satã e com curadoria de fabiano calixto. deixo os poemas aqui e o convite neste link para que leiam a revista completa. tá peso.
Ode à gentrificação
Samantha Thornhill
Moradores coroas desse
bairro branqueado-qboa dão a letra:
a coisa mais autêntica
dessa rua reinventada
na madame branquela
e no seu yorkie
é o couro da coleira
que os acorrenta.
Seu próprio nome, um estilhaço
de vidro profundamente enraizado na banha
do nosso vernáculo. Gentrificação,
justamente confundida
com justaposição:
cults bacaninhas com arrogância,
grilagem de terras,
arranha-céus depressivos,
bodegas suspirando soja.
Meninas e moleques peruanos engordam
geladeiras com puríssima água Fiji entre
uma e outra tarefa de casa, enquanto papai
prepara e reparte tudo e mamãe
se preocupa com os registros de energia.
Fazendo fita pra tua gratificação,
O nascimento é gratidão – irmã
gêmea do arrependimento.
Me chama de arrependida.
Foi mal aí te agradecer
pelo jeitinho que
participo da sua cruel
e conveniente, mágica.
Por remover
as famílias que sonharam
onde minha cabeça hoje descansa.
Ontem, as roupas voltaram da lavadeira
mais límpidas que sinos, lingeries
acariciadas pelas mãos
de outra mãe.
Sento em cima da cara
seu lado da moeda,
bebendo a escória azul do céu
enquanto os adolescentes que ensino,
e as vóinhas pretas
duronas que dou um salve
e ofereço um banco,
beijam o asfalto.
--
Ode to Gentrification
Old school denizens of this
bleach-boned block say:
the realest thing
about the white woman
and her Yorkie
on this reimagined street
is the leather of the leash
that tethers them.
Your very name, glass
splinter planted deep in the fat
of our vernacular. Gentrification,
rightly mistaken
for juxtaposition:
pretty boys with swagger,
checkerboard trains,
skyscraper sadness,
bodegas sighing out soy.
Peruvian girl and boy fattening
fridges with Fiji between
homeworks, while Pops
slices and dices, and Mom
rocks the register.
Kissing cousin to gratification,
you birth gratitude—
twin to regret.
Call me regrateful.
I am so sorry to thank you
for the manner in which
I participate in your cruel,
and convenient, magic.
You ushered out
the families who dreamed
where my head now rests.
Yesterday, I retrieved laundry
cleaner than bells, unmentionables
caressed by another’s
mother’s hands.
I sit on the up-
side of your coin,
drinking down the sky’s blue
dregs, while the teens I teach,
and the sturdy black
grandmothers I salute
with my seat,
kiss concrete.
*
Carvão
Audre
Lorde
Eu
A
suprema pretura, que fala
Das
profundezas da terra.
Existem
muitas maneiras de se abrir.
Como
um diamante se abrindo num nó em chamas
Como
um som se abrindo numa palavra, colorida
por
quem assume os riscos para falar.
Algumas
palavras são abertas
Como
um diamante em vidraças
Cantando
na cadência do sol que as atravessa
E
também há palavras como desafios grampeados
Em
blocos-de-notas – listar, comprar e descartar –
Aconteça
o que acontecer, todas as possibilidades
O
canhoto permanece
Um
dente mal-arrancado com uma borda lascada.
Algumas
palavras vivem na minha garganta
Se
reproduzem como víboras. Outras conhecem o sol
Buscando
como ciganas sobre a minha língua
Explodir
pelos meus lábios
Como
jovens pardais explodindo sua casca.
Algumas
palavras
Me
atormentam.
Amor
é uma palavra que inaugura outra maneira de se abrir.
Como
um diamante se abrindo num nó em chamas
Sou
preta porque venho das profundezas da terra
Segura
a minha palavra, como uma joia aberta em sua luz.
--
Coal
I
Is the
total black, being spoken
From the
earth's inside.
There are
many kinds of open.
How a
diamond comes into a knot of flame
How a
sound comes into a word, coloured
By who
pays what for speaking.
Some
words are open
Like a
diamond on glass windows
Singing
out within the crash of passing sun
Then
there are words like stapled wagers
In a
perforated book – buy and sign and tear apart –
And come
whatever wills all chances
The stub
remains
An
ill-pulled tooth with a ragged edge.
Some
words live in my throat
Breeding
like adders. Others know sun
Seeking
like gypsies over my tongue
To
explode through my lips
Like
young sparrows bursting from shell.
Some
words
Bedevil
me.
Love is a
word another kind of open –
As a
diamond comes into a knot of flame
I am
black because I come from the earth's inside
Take my
word for jewel in your open light.
*
MALCOLM X
Gwendolyn Brooks
Para Dudley Randall
Primordial.
Tipo puído-puro,
Tipo poderoso-parrudo.
Seus olhos eram de homem-falcão.
Ficamos perplexos. Vimos a virilidade.
A virilidade varrendo tudo, tornando o ar gutural
E nos impulsionando contra as muralhas.
E num momento sereno e essencial
Um sortilégio piedoso e vertical
Seduziu o mundo.
E nos abriu pra sempre porque -
Ele era
palavra-chave
Ele era o cara.
--
MALCOLM
X
Gwendolyn
Brooks
For
Dudley Randall
Original.
Hence ragged-round,
Hence rich-robust.
He had the
hawk-man’s eyes.
We gasped. We saw the maleness.
The maleness raking out and making guttural the air
And pushing us to walls.
And in a
soft and fundamental hour
A sorcery devout and vertical
Beguiled the world.