segunda-feira, 22 de abril de 2019

DAS VEZES QUE ME TORNEI BRANCA

Michelle Kingdom, The Dressing Room (sold). Bordado, 2016.



da primeira vez
não dei por isto ou aquilo
uma pá de cal
tão branquinha
atirada pelas criancinhas
como flecha
cabelo de repolho bozo
esquisita suja fedida

e a vez de querer muito muito forte
esfregar o tijolo na cara até a carne se saber a sangue
sangue azul sangue branco

cresce cresce cresce

nove aninhos
ai ai ai
que peitinhos mais lindinhos
ai ai ai
que bunda tão grande como pode sem celulite
ai ai ai
já pode aprender usar a boca
ai ai ai
que virgindade mais apertada
ai ai ai
que mulatinha tão gostosa
ai ai ai
você é tão inteligente pra sua idade
ai ai ai

pode pode pode
você quer leitinho?
olha que branquinho

cresce cresce cresce

as vielas na periferia
o campinho de futebol
a goela seca

não cotas não
sim samba sim
sim chapinha sim
não raiva não

cresce cresce cresce

oi amiga
não hoje não
oi joana
sim hoje sim

uma luta maior que a outra
uma lata mais vã que a outra
bares caçambas papel picado absorvente

cresce cresce cresce

NOTÍCIA DE JORNAL
hoje na jornada de arte negra
a poeta x
a novíssima literatura negra
pra ser lida nas escolas

SOU NEGRA
SOU NEGRA?
SOU NEGRA!

cresce cresce cresce

os beiços imensos roxos
os bicos dos peitos pretos
o pixaim armado
a vulva roxa
os bisavós escravizados
o avô fugido da servidão
uma avó tão branca

neta de quem?

se me querem por fêmea
NEGRA
se me querem por intelectual
MULHER?
se me querem por profissional
HETEROCISGÊNERA
se me querem por escritora
BRANCA
se me querem
COSPEM OS LÁBIOS LIVRES

cresce cresce cresce

o homenzinho violenta a mulher
digo porque sim ela é mulher
ele diz ninguém estava dentro do quarto
sou negro sou negro você é racista
poetisazinha de versos de merda

e ainda uma índia a voar
paloma negra

PELOS ARES COM SEUS SANGUE PODRE

cresce cresce cresce

da múltipla vez
não dei por mim
estava a gaguejar um verso que me martela
TERESA TERESA TERESA
uma avó esquecida de tão negra
um poema tão macho um poema tão arraigadinho
que qualquer poema só sabe dar bandeira

a filhinha chora
meus beiços meus pelos meus cabelos meus peitinhos minha história
e essa maldita pele tão branca

a poeta x negra é invisível pra todos os machos
a poeta lésbica branca é alvejada por todos os machos
a poeta gorda trans é batida por todos os machos
as mulheres são odiadas por todas as instâncias
ó por todas as feministas

da última vez
disse sim

mulher
mulher negra coberta das poemas mais ternas das poemas mais raivosas das poemas mais poemas porque sim eu quis assim
a poeta negra
A IMENSA POETA NEGRÍSSIMA

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