segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

As Enterradas Vivas, na 'modo de usar & co.'

a revista modo de usar & co. começou série no ano passado, chamada "As enterradas vivas", convidando diversos poetas brasileiros contemporâneos a lançaram seus olhares sobre mulheres importantes de nossa História que frequentemente acabaram soterradas pelo silêncio.

na última semana, escrevi para a série, homenageando Carolina Maria de Jesus  (1914 – 1977), autora dos livros Quarto de despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Diário de Bitita (1982), Meu estranho diário (1996), Onde Estaes Felicidade (2014), entre outros.


onde estaes, negra?

1.
nasci antes da poesia
sacramento é como terra cerrada
como canindé ou qualquer canto
aborrotado de negros
lamento encontrado nos lixo
o menino jesus tá veno
vê que muita gente faz as coisa ruim
em causa de frio e fome
até os penico de merda que me jogam
das veiz inveja também
mal compreensão
magine se num sabem nem lê
queria mesmo é ser cantora e atriz
sei escrevê e sei dizê a boa língua sim
mas bão é assim fagulha na língua
português gostoso sem contrato e casamento

tenho fome
tenho frio
as criança geme
sei mais que dizê não
u’a dor no estômgo
engole toda outra
ugolino e seus fio
fome de tudo dona
o amor faz bem
uso droga não
eu sou a palafita
a lata e os papelão
o rio e o rato
‘saiam ou eu vou colocar vocês no meu livro’

2.
a negra é ruas
as palafitas bonitinhas
escandalosa em seu silêncio de cárcere
uma ondinha vinda com um cargueiro
e caranguejinhos cheios de febre
você viu os mosquitinhos invisíveis no ano-novo?
picavam
pica o fumo
pica a fome

a negra é sem caso
sem casa e a penquinha de filhos
escorrendo o sangue
uma casinha tão bonitinha de palha
de porquinho que leva a vida na flauta
instrumento barato esse
o outro não
piano de cauda 
virtuose e concreto
sabe o que faz
sabe o mérito?

a negra é a selva aberta na pele
com os espinhos e os bichos 
paraíso e inferno
aqueles tantos sem nome feito negra
pequeninos imundos
gigante a besta fera & sono
você já sentiu hoje qualquer coisinha
como formiguinhas carnívoras nos dedos?

a negra é um terreno baldio
cova rasa mais que cemitério
e essa voz de fantasma insistente 
que não te mete medo
fotos carcomidas pelo tempo bom deus
carcomidas germidas co’s entulhos
e sacolinhas de mercado jogadas do alto
do hollyday ao são pedro
rasura na paisagem
já quis ser a faca que pudesse agradecer
ter sido largada ensanguentada
junto à ferrugem dos dias?

a negra é toda livros
empilhados de qualquer jeito 
sem estante e muitos olhos
em branco
no barraco na calçada
bordas enegrecidas
uns lombos lombadas de se fazer poema
amassados rasgados usos muitos
esquecidos raros
já foi da escritura a própria pele
atravessada pela tinta e o mau-cheiro?

a negra é carolina 
mares se abre
salto
afogamento
as entranhas da mulher
a barba do homem
maria
de jesus 
*

Leia a série toda aqui!

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