segunda-feira, 13 de maio de 2013

arcada auschivitz, poema impossível


[para roberta silva]

se é impossível escrever um poema depois de auschivitz
penso num pequeno tratado sobre a numeração dos dentes

talvez um desenho, um poema visual, um processo semântico
lograssem mais êxito, sobretudo se levamos em consideração
que as palavras - coisas nomeadas e que juntas e comunicantes
constituem a linguagem - são tão poucas, fino alcance do querer
entredentes, se chamamos este de 'poema impossível'
temos um poema da dor, mas que não dói, pós-auschivitz:

1.
o primeiro dente, aquele da arcada superior esquerda que nasce primeiro
- ou que mais comumente é primeiro -, este primeiro, é o 11
e o seu vizinho, caminhando e contando sempre à esquerda, 12
e sucessivamente 13, 14, 15, 16, 17 e 18.
seguimos para o vizinho da direita, daquele primeiro
que chamamos 11, este vizinho da direita, chamam 21, sim,
pularam os odontólogos em suas conferências os 19 e 20 e já
antecipando, os 29 e 30 e os 39 e 40, por alguma razão que a bela
drª aparecida não disse. voltando, seguido ao 21, volver direita:
22, 23, 24, 25, 26 e 27.

2.
a arcada inferior
o primeiro dente debaixo, paralelo ao primeiro, que é 11, de cima
caminhando e contando sempre à esquerda: 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37
e 38. volver direita: 41, 42, 43, 44 (e agora o famigerado 45
que nesses tempos de guerra, logo passado, dói tanto quanto já doeu um
canalizado 44), 46, 47 e finalmente o 48.

pronto, uma boca com 48 dentes à minha revelia

uma boca pasmada aos números, uma boca escancarada por onde correm
o vento, o café fumegante, o bochecho gelado do enxague

correm pelo papel como meus olhos de querer morder
como o horror dos campos de concentração, como o riso
das hienas - às conquistas, o progresso, o devir, deus

correm sem qualquer crença, sem qualquer novidade
(tudo foi e não será
os monumentos tombados
as cabeças cortadas
o brilho dos olhos dos pobres
a verde e tenra grama)

correm pelo papel
 - como aos meus olhos os dentes -

correm como a vida se estende
dorida, sem sentido numerada
para a morte.

3 comentários:

ragi moana disse...

muito bom o poema, obrigada, não mereço tanto.

Anônimo disse...

Foda, Nina, que poema!
Beijo.

May Viana disse...

Realmente muito bom! Passeando por aqui, encontrei seu blog e não pude deixar de dar os parabéns!