[para roberta silva]
se é impossível
escrever um poema depois de auschivitz
penso num pequeno
tratado sobre a numeração dos dentes
talvez um desenho, um
poema visual, um processo semântico
lograssem mais êxito,
sobretudo se levamos em consideração
que as palavras -
coisas nomeadas e que juntas e comunicantes
constituem a linguagem
- são tão poucas, fino alcance do querer
entredentes, se
chamamos este de 'poema impossível'
temos um poema da dor,
mas que não dói, pós-auschivitz:
1.
o primeiro dente,
aquele da arcada superior esquerda que nasce primeiro
- ou que mais comumente
é primeiro -, este primeiro, é o 11
e o seu vizinho,
caminhando e contando sempre à esquerda, 12
e sucessivamente 13,
14, 15, 16, 17 e 18.
seguimos para o vizinho
da direita, daquele primeiro
que chamamos 11, este
vizinho da direita, chamam 21, sim,
pularam os odontólogos
em suas conferências os 19 e 20 e já
antecipando, os 29 e 30
e os 39 e 40, por alguma razão que a bela
drª aparecida não
disse. voltando, seguido ao 21, volver direita:
22, 23, 24, 25, 26 e 27.
2.
a arcada inferior
o primeiro dente
debaixo, paralelo ao primeiro, que é 11, de cima
caminhando e contando
sempre à esquerda: 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37
e 38. volver direita:
41, 42, 43, 44 (e agora o famigerado 45
que nesses tempos de guerra,
logo passado, dói tanto quanto já doeu um
canalizado 44), 46, 47
e finalmente o 48.
pronto, uma boca com 48
dentes à minha revelia
uma boca pasmada aos
números, uma boca escancarada por onde correm
o vento, o café
fumegante, o bochecho gelado do enxague
correm pelo papel
como meus olhos de querer morder
como o horror dos
campos de concentração, como o riso
das hienas - às
conquistas, o progresso, o devir, deus
correm sem qualquer
crença, sem qualquer novidade
(tudo foi e não será
os monumentos tombados
as cabeças cortadas
o brilho dos olhos dos
pobres
a verde e tenra grama)
correm pelo papel
- como aos meus olhos os dentes -
correm como a vida se estende
dorida, sem sentido numerada
para a morte.
3 comentários:
muito bom o poema, obrigada, não mereço tanto.
Foda, Nina, que poema!
Beijo.
Realmente muito bom! Passeando por aqui, encontrei seu blog e não pude deixar de dar os parabéns!
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