sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ENTREVISTA E DIÁLOGO POÉTICO

Por Marcelo Novaes, in Bloco de Notas [desativado]

Nina Rizzi



MNNina, você não sabe pintar, mas sabe ler arte [inclusive artes plásticas]. Suas postagens são verdadeiros "murais culturais": história, história da arte, traduções de escritores de tempos e línguas diversos, inter-textualidade com tais obras, além dos teus trabalhos autorais. Ainda que você seja bastante contemporânea, há algo de "humanismo renascentista" em Nina Rizzi, ou da forma como te olho. Ao mesmo tempo em que aprecio [e muito!] a articulação implicada em tuas ricas apresentações-murais-postagens, eu me pergunto se tal proposta não esbarraria na pressa e/ ou preguiça do leitor digital médio. Você não escreve para o leitor digital médio, of course. Quem lê Nina Rizzi?


NR: Eu passei quase toda a infância em zonas rurais do interior paulista. Quando tinha cinco anos peguei o grande livro de cabeceira de meu pai e sabe-se lá como decodifiquei aqueles símbolos que tenho, decorados, ainda hoje: “Ora naqueles dias depois daquela aflição: o sol se escurecerá, a lua não dará a sua luz, então verão vir o Homem nas nuvens, com grande poder e glória... [Marcos, 13:16]”. Todas aquelas histórias mexiam comigo, claro, era outra realidade dentro da minha concha, no entanto, peguei certo asco de tal leitura, pois toda vez que alguém aparecia em casa sentia-me uma macaca de circo tendo que ficar lendo os tais versículos... Mudamos em definitivo para a cidade quando tinha onze anos, mas nunca parávamos numa casa, vivíamos como costumo dizer “déu em deu”. A biblioteca da escola onde estudava era um refúgio, em pouco tempo devorei a sessão infanto-juvenil e o anjo da bibliotecária passou a me indicar alguns livros de poesia, o primeiro que li e estabaquei foi uma antologia de Manuel Bandeira. Depois li Germinal, do Zola, que mexeu profundamente com meus anseios, pensava se não me seria possível um dia juntar-me aos “meus” pra mudar aquilo tudo. Mas a chispa que me disparou para novas possibilidades foi Obras Incompletas de Nietzsche, uma belíssima edição encadernada em azul e com gravuras de Goeldi que encontrei na rua. Eu pouco pude entender, mas sua “Canção bêbada”, as reflexões sobre o cristianismo a arte e o “super-homem”, que ali compreendi como o sujeito que não espera as coisas caírem dos céus e se supera, fazendo-me perceber que aquela minha realidade não era a realidade/ verdade fidedigna, mas representações cristalizadas... Eu tinha treze anos e nunca mais fui a mesma. Fui buscar as obras de Goeldi e Nietzsche na biblioteca municipal de Ribeirão Preto, um belíssimo prédio do século XIX, se revelou pra mim um paraíso, onde outras pessoas pensavam como eu ou diferente de meu círculo, e outras realidades eram possíveis, inventadas ou não.


A arte, a filosofia, as letras me salvaram de mim mesma, já que sabia não poder trilhar aqueles caminhos, por pura falta de “talento”. Isso poderia ter ocorrido antes, se na minha casa ou nas escolas onde estudei tivesse acesso à cultura. Em casa, meu único escapismo eram os filmes que via com meu pai. Por outro lado, quando comecei a me engajar nas leituras esbarrei na linguagem, sentia-me a tirar leite de pedra, o que me deixava ainda mais intrigada e com mais vontade de esmiuçar. O Ellenismos é o modo que encontrei de devolver ao mundo, ao meu povo, outras verdades e possibilidades, o belo e o sublime, mas sem academicismos ou linguagem rebuscada, meus “painéis” e análises de artes são de fácil compreensão, até mesmo didáticos, penso que minha poesia chega a ser mais “difícil” que os textos teóricos.


MNEssa tessitura de temas, além de afrontar a pressa/ preguiça do consumo digital [certa "voracidade impaciente"] exige muita concentração e foco da tua parte. Teu empenho encontraria alguma "resistência inercial" ou torpor ao leitor menos habituado com amplos e concatenados painéis? 


NR: Sem dúvida muito do que está ali não é lido (que pena). Há os que só leem os meus poemas, os que só leem os outros poemas, os que só “passam os olhos” e os que procuram imagens... Mas sei que há quem lê as postagens e percebe que tudo está interligado (como você), como também acontece de um dia o sujeito se deparar com um assunto de seu interesse e então perceber que seu passeio virtual pode ser muito mais que flanar, talvez, como eu, tente se concentrar e passe a ver novas possibilidades/ realidades apresentadas pelas artes. Se uma pessoa alienada ou perdida lesse uma edição do blogue e se questionasse, duvidasse, refletisse, criticasse ou simplesmente risse, eu já estava contente.


MNEm corridas de atletismo há o "corredor fundista", aquele que corre de dez mil metros pra mais. Eu te considero uma fundista cultural. Pra correr tanto, tem que se alimentar bem. Desde quando a cultura te alimenta? E em quais fontes e pomares vc se abastece?


NR: Desde os seis anos, quando entrei na escola, nunca mais deixei de ler um só dia, e leio tudo: poesia, prosa, biografias, filosofia, política, até mesmo aquelas letrinhas miúdas da embalagem de papel higiênico quando estou no banheiro. Todos os dias leio dois jornais do estado (Ceará) e a Folha (sic), às vezes o Le Monde Diplomatique; todas as edições da Caros Amigos e Carta Capital, às vezes a Cult, Preá (RN) e Farol (CE), além de algumas revistas de cultura da rede, as que estão na lista de linques lá do Ellenismos.


MNVocê se agrega a muitos grupos de escritoras. Há algum interesse particular numa "literatura de gênero" ou essa aglutinação de mulheres escritoras é contingencial? Você crê num olhar literário que mereça o rótulo de feminista? Essa "etiqueta" [ou classificação] caberia a quais escritoras de hoje? Há algum homem feminista na área?


NR: Meu interesse é a literatura, seja ela feita por mulheres ou homens, àquela cujo sentimento é universal. Mas creio haver sim uma “literatura de gênero”, há um abismo cultural entre os sexos o que se reflete em nosso agire/ pensare e claro na literatura e nas outras artes. Se eu fui criada pra ser “mulherzinha do maridinho que cuida dos filhinhos e sonha com novelas”, logo minha produção será açucarada, bem como o contrário. E tenho uma visão feminista de mundo, feminista e não femista, onde todos são iguais em sonhos, direitos, oportunidades. A mulher está se mostrando, se arriscando, dizendo a que veio e tem muito que dizer.


Hilda Hilst, Leila Míccolis, Elisa Lucinda, Marize Castro, Manuela Amaral são bem feministas, quer dizer, tratam em seus escritos, também, de assuntos pertinentes à mulher, mas não numa posição vitimizada ou “água-com-açúcar”, são os “super-homens” como absorvi do em Nietzsche lido aos treze anos, bem como as Escritoras Suicidas, e lá tem homens! E se feminista é o sujeito que vê os humanos numa horizontal (sem trocadilhos!), há sim muitos escritores feministas, como Frei Betto, Saramago, Gabriel García Márquez, Jarbas Martins e até você, Marcelo.


MNVocê foi umas das primeiras pessoas que eu escolhi para dialogar poeticamente, fazendo "réplicas poéticas" a textos teus, por considerar que "o diálogo evocatório" faz surgir o sub-texto, o inter-texto, e alarga a leitura do texto do próprio autor. Aliás, é essa a minha proposta para qualquer Oficina Literária: algo entre a Evocação e a Crítica, entretecidas em diálogo escrito. Você crê em Oficinas Literárias, Workshops ou Oficinas de Arte de qualquer espécie?


NR: Creio que os textos só pertençam a seus autores no momento da concepção, depois já está em domínio público, quer dizer, ele é de quem o lê, de quem o interpreta e apreende segundo sua história pessoal. Eu posso escrever algo querendo dizer uma coisa e cada um que ler entender uma coisa e se conversar com você sobre meu texto, percebo que disse muito mais do que queria, e certamente queria – conscientemente ou não -; e posso atribuir ainda muitos outros significados se “me ler” tempos depois, quando já não sou a mesma...


Creio nas oficinas e afins como troca e gosto disso, mas não como “curso” ou diretrizes como “pra escrever bem tem que fazer assim ou assado”. Claro que tenho meus gostos e exigências, mas não creio haver um método, técnica ou forma. Como disse o Saramago: para escrever basta escrever.


MNSem favor nenhum, eu te chamaria de uma pessoa vocacionada à "crítica da cultura", dentro de certas balizas e parâmetros que norteiam o seu ver/dizer/pensar. Aí, eu volto ao velho e bom humanismo, que parece ser o élan de bons historiadores, filósofos, cientistas sociais. Penso em Anatol Rosenfeld, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido, Darcy Ribeiro, Hélio Jaguaribe. Guardadas as devidas proporções, eu te vejo herdeira desse “pulso" e desse "tônus", no teu modo de se posicionar. Ou seja: eu te ponho na estirpe dos pensadores-criadores, que não pensam a literatura em termos estritos, mas como "índice da temperatura cultural de um tempo e de uma sociedade". Você é extremamente ciente desse "índice". Quais as referências que você preza e que contribuíram para dar lastro ao gênero de trabalho que você se propõe a fazer?


NR: (Ancha) Conversar sobre arte, sobre linguagem da arte, pode parecer um diálogo solitário. Mas não, é apenas silencioso, como diz Henri Wallon, temos muitos socius internos, parceiros internalizados: os teóricos que já lemos os professores com quem convivemos, amigos, personagens, enfim, todas experiências vividas, ou os conceitos que construímos, influenciam nosso contato com o mundo e o modo como o lemos. Mesmo frente a essa entrevista atualizo meus sentimentos e pensamentos marcados por tantas outras leituras que já fiz. Assim, a leitura de palavras, de imagens, do mundo, é carregada de sentidos que tanto estão nas imagens, palavras, mundo, como no seu leitor. Gosto dos pensadores iluministas (mas não do liberalismo econômico), a ruptura a que se propuseram fazer, expressa na máxima de Voltaire: “posso não concordar com o que você pensa, mas lutarei até o fim pelo seu direito de dizer”; de Descartes e seu “duvidar e refletir”. Sérgio Buarque de Hollanda e Otto Maria Carpeaux, Antônio Cândido, são alguns dos meus santos, juntamente com Octavio Paz, Michael Foucault, Sartre, Hanna Arendt, Giulio Argan, Ortega Y Gasset, Ernst Gombrich, Paulo Freire, Karl Marx e Engels, Gaston Bachellard, Pierre Bordieu, Pierre Lévy, Maurice Merleau-Ponty, Gilberto Freyre, Walter Benjamin, Teodor Adorno, Howard Gardner, Ernst Fisher, Josué de Castro, Florestan Fernandes, Heidegger, Kant, Schoppenhauer, Deleuze, Lênin, Trotsky... Nossa, é tanta leitura necessária que gostava de crer em reencarnação: uma vida é muito pouco pra tudo o que tenho que ler e escrever e viver e fazer... Ah, o Nietzsche também, claro...


MNSaindo do campo da crítica cultural para a crítica estética, você concebe um crítico de qualquer das artes não-criador? Ou crê que a própria crítica seja um "modo mitigado de criar", algo assim como uma "criação vicária"? Crê num élan crítico-criativo mais reativo do que pró-ativo? Se eu penso em Panofsky, por exemplo, eu caio na categoria acima, dos críticos-pensadores e não dos resenhistas de jornal de hoje. Quem são os críticos de arte dos meios de comunicação de hoje?


NR: Um amigo dizia que a crítica está para o crítico, assim como a arte para o artista (risos), mas não é bem assim. Saber ler um texto, uma imagem, é sim uma arte. Ora, se digo que não sei pintar, mas me proponho a ler uma imagem não será isso arte? Diz com mais justeza Monegal: “Todo o julgamento é relativo, e crítica é também uma atividade tão imaginária quanto a ficção ou a poesia.” Claro que há exceções no silêncio ou na gritaria do crítico, e as que o próprio silêncio cria. Conspirações não prosperam, nem calam a palavra vivente. “Quanto mais oprimem os talentos, maior glória com isso lhes preparam”, escreveu C. Tácito, nos Anais.


Críticos-críticos? Affonso Romano de Sant’anna, Nelson Patriota, Wilson Coutinho, Maurício Dias, Floriano Martins, Claudio Willer... Mas olha, leio tantas críticas boas de gente que faz questão de frisar não ser crítico... Já leu o Substantivo Plural (www.substantivoplural.com.br)?


MNVocê acredita em literatura militante além-panfleto? Pode haver literatura engajada muito além do panfleto, slogan ou das palavras-de-ordem? Conhece alguém que faça boa literatura desse tipo no Brasil, hoje?


NR: “A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse pra quê...”, Jean Cocteau resume aí a necessidade da arte e seu discutível papel no mundo burguês. A alienação pode ser entendida como a alienação da sociedade em relação às próprias origens e desdobramentos da arte. As artes têm sim uma função social no mundo contemporâneo dominado pela ciência e tecnologia; a arte sensibiliza as pessoas para os problemas sociais de dentro pra fora, pela sensibilidade, logo de modo muito mais eficaz e efetivo. Mas a arte não é um substituto, expressa uma relação profunda entre o ser e o mundo, logo não pode ser resumida a uma única fórmula e, se observarmos suas origens, veremos que essa “função” se modificou e novas passaram a existir. Milhões de pessoas leem livros (infelizmente muito menos do que deveria), vão ao cinema, exposições, museus, e não apenas por divertimento, distração, a arte completa uma vida que não nos basta. Mas, como aponta Antônio Cândido, o problema principal da arte de nosso tempo é criar uma ponte entre o povo e o artista, e um dos males dessa sociedade é que a própria angústia da condição humana só pode ser sentida por uns poucos, privilégio dos que dispõe do ócio e que precisa ser estendida a todos.


Preciso ler tanto mais que os clássicos... Mas Ferréz, MV Bill, Paulo Lins, Giuliano Quase (do Noturno Citadino), Jarbas Martins, cordelistas nordestinos, alguns coletivos de arte como o Óbvius Mexidos, o do MST, tem produzido boas, boníssimas coisas, e no caso do último não só em literatura, mas também em música e artes plásticas.


MNHá pessoas que fazem crítica da cultura através de uma "pequena angular", usando um viés [e aqui defino viés no sentido etimológico não-pejorativo do termo, como vértice-de-leitura], como quem olha pela fresta de alguma fechadura. Exemplificaria alguns destes: Millor Fernandes, Nélson Rodrigues, João Antônio, Jaguar Lima Barreto [!], Graciliano Ramos [!], Ziraldo, Yukio Mishima, Jean Genet, Plínio Marcos. Pode haver, além disso, uma literatura de espreita-denúncia sem que o espreitador esteja imerso na realidade descrita. Há malditos de fato, semi-malditos e espreitadores da maldição. Há malditos na tua estante de cabeceira [mesmo que seja uma estante virtual, por falta de espaço em casa...]? Quais?


NR: E o Aluísio Azevedo, né? (risos). Na minha estante, aqui do lado, você encontra Torquato Neto, Rimbaud, Baudelaire, Caio Fernando Abreu, Raduan Nassar, José Alcides Pinto, Guilherme de Almeida (ah, que bendita maldição o seu “Raça”), Henfil, Bukowski (!!!), Kerouac, Burroughs, Ginsberg, Win Dierckxsens, Anaïs Nin, Cefas Carvalho, Moacy Cirne, Rodrigo de Sousa Leão, Sebastião Nunes, Jorge Amado, Knut Hansum, Dostoiévski (?!), George Grosz, além dos soviéticos, angolanos, chineses e moçambicanos... A estante virtual não é por falta de espaço em casa, grande e sem mobília além do essencial, mas pelo giro dos livros e a falta de dinheiro mesmo (risos)... Giuliano Quase do Noturno Citadino, André HP do Formigueiro Comunista, Cisco Zappa do Nasciclovias Insurgentes, Namibiano Ferreira do Ondjira Sul, Adrian Dorado do La Zona Irredenta, Danilo Lima do A ti, poesia, Rubens Pesenti do Poemastigando, Paulo D’auria...


MNQual a importância da estética para uma educação do olho e da sensibilidade? Você acredita [um laivo que seja...] na proposição estético-romântica [e aqui penso, por exemplo, num Schiller] que enxerga a ética quase como que um desdobramento natural [ou um corolário] da educação estética? No caso alemão, podemos ter um forte contraste com tal suposição otimista, uma vez que o pseudo-refinamento da República de Weimar deu seu endosso ao ideário nazista. Diante da complexidade do tema, e sendo você uma pensadora, como vê você a relação entre educação estética e ética?


NR: Os PCN’s sugerem trabalhar com conceitos estéticos e, como dito antes, se é mais fácil sensibilizar, tocar, levar à reflexão e crítica através da arte, logo é mais que fundamental e necessária, num mundo dominado pela competitividade e corrupção – desde os altos escalões até o aluno que paga para outro lhe fazer o trabalho, a arte é urgente para que se crie um mundo mais.. “vivível”.


A formação ética e estética acontece na educação e é possível sim transformar a ética numa estética da vida, citando Deleuze, “o conceito do pássaro deve contemplar a beleza da plumagem para além da classificação da espécie”. O processo educativo ocorre concomitante aos processos econômicos, sociais e culturais, desse modo não cabe somente à escola a educação, mas a toda sociedade. Partindo do pressuposto freireano de que a educação deve ter uma visão global do aluno, com sua realidade e sentimentos particulares, um processo criador e “recreador” ligados às próprias experiências existenciais e origens culturais dos sujeitos históricos... é preciso, portanto, relacionar o eu com o mundo, e a expressão dessa ética se dá na estética, em todas as formas de expressões humanas. Assim, a arte não é e não deve ser privilégio de classe, mas ser construída e compartilhada por todos, engajados em uma produção/ profusão crítica e criativa na construção horizontal do conhecimento. O ato de conhecer, de criar e recriar objetos faz da educação uma arte. A educação é práxis,a teoria na prática, um ato político, ético e estético.
MNO que é uma "puta resoluta" e o que é uma "escritora suicida"?! Pulsões de vida e morte dialogam no teu fazer literário? Tua hipervitalidade te mantém bem enraizada à vida ou, vez por outra, há algum "flerte com a morte"? O que acha dos escritores suicidas de fato?


NR: Uma puta resoluta é uma mulher que não tem medo de ser mulher, que expõe seus desejos e angústias e não fica esperando ligações: liga; não fica choramingando, dá a volta por cima. Já a escritora suicida é aquela que mata tudo o que a impede de ser mulher, que mata a mulherzinha que há em si para ser a “super-homem” (ainda o sentido nietzschiano absorvido aos treze...), para ser a puta resoluta. A Escritora Suicida, a puta resoluta, são mulheres que matam o impossível. Nós somos impossíveis dentro de todas as (im)possibilidades.


Na infância tentei me suicidar uma vez. Minha mãe me levou numa psiquiatra horrível que, não sabendo o que dizer, simplesmente me diagnosticou como “esqueizofrênica” (risos). Algumas outras vezes na adolescência. Uma vez cortei os pulsos e o médico me chamou de estúpida, que estava tirando vagas na emergência de gente que queria viver e que da próxima vez fosse na jugular, que as veias dos pulsos são superficiais (risos). Não tentei mais, sou apaixonada pela vida e nem umas dez me seriam suficientes. Mas talvez eu tenha inúmeras atividades para não sucumbir à melancolia, sim, eu sou muito melancólica, diante das angústias e injustiças do mundo, mas também por razões intrínsecas, e quando estou trabalhando (e aqui num conceito marxista que vai muito além do trabalho remunerado), fujo um pouco dos “passionalismos” e posso ter irmandade com as gentes, como escrito num poema.


Os suicidas? Corajosos.


MNObrigado, Nina.


NR: Um beijo, Marcelo, adorei nossa conversa.
*


Diálogo poético com Nina Rizzi:
I. Chove chuva. Mas só por uma noite.
é impossível dormir com um silêncio desses...


sou palesti (ni) na
desde que nasci.
e há pedaços em mim
por todos os lados.
há cacos de mim
chovendo em is(la)
rael
: gritavam eles
(era um nome. uma criança)


eu era um mapa
re-cortado
pelo capitalismo.
ismo. doente.


queremo-nos juntar?
só os puzzles,
os filhos,
a chuva de mim...


Nina Rizzi




Lamentos árabes


Nina, desde sempre
espalhada em ilhas.
Pedaços, cacos. [Nem
sei se feita da mesma
argila de nossos
carrascos].


Segure o asco e olhe [ainda hoje]
nos meus olhos, sem embaraço...
[e veja como estão baços & quietos.
Parecem sonolentos, por uma noite
tentando decifrar Platão, enquanto
soprava o vento. E longe, na mansa
planície, matavam-se nossos irmãos].


Se chove em ti às vezes,
Nina [ou se, em pedaços,
te desmantelas como puzzle
-quebra-cabeças a nos inflamar
melhores ímpetos...], que chova
em nós, também, a parte infinita e
invisível de tua lágrima, nesta noite
caída. Interminável.


Marcelo Novaes


II. Elementar, caríssima poeta.


elementar


ela não apenas
me faz divagar-viajar
ela está em tudos
: olhos-decote,
dentes-fitas.
[e até nessa dor
desgraçada-insistente
rins-vesícula-ovários-útero]


ela é uma senhorita desaparecida
em todos meus pertences
seres-células.
ela é meu ello
do novo com o antigo,
trágico e belo,
o querer e o dever;
é a dialógicalética de mim.


essa moça vive comigo na irlanda,
ou em qualquer país
na década de 50 do século XX
[confesso
: me fez matar o homem
que a queria longe de minha cama]


ela tem uma cadela.
eu tenho uma filha.
nós temos nós.
[se(i) que a tenho
feito ela de mim]


nós é uma bela palavra
feito afogamento,
esbatelamento-de-ecrã,
quiça ter-me-ás, tu-as-me.


não, ela não zomba de mim!
ela me quer e tem inteira
sen-tidos tudos.


e eu sou feita dela
minguante nela
nova-nos
cheia dum crescente nós
: monstro e pomba;
auto-retrato e painel;
diferentes igualdades;
grande-miúda;
o vento e a água.


seremo-nos ondas
até que nunca amanheça
e permaneça só serenos
nos-sos filhos.


Nina Rizzi


Holográfico


Não me importa que
ela habite teus ossos,
músculos ou vesícula.
Que lhe desperte Eros
[arrepie a pele], ou te
empurre à bile. Desde
que me fite nos olhos
e comigo converse o
Algo [um algo]
desses Abismos
Todos. Somos
Íntimos.


Vou avisando logo:
quero compromisso de
confidente. Não me importa
quantas delas - senhoritas
desaparecidas ou foragidas –
morem na Irlanda ou militem
no IRA.


Sei que em ti, também, habita
uma criança, que, por ora, mora
fora de suas células. E dentro. Como
um holograma-de-afeto, pós-feto.
[E como sei que isso é bonito...]


O fato, irrefutável [e quase
trágico] é que mataste um
homem, no meio do século
passado.


Talvez eu possa [devo confessar
mais que mero esforço para fazê-lo]
conviver com este teu lado, digamos
assim, menos afável e mais disposto.
[E de sangue salpicado].


Se você é minguante ou
crescente, pomba-gira grande ou
miúda, pouco se me importa: isso
é com sua amante. Eu sou gente.


[Serve?!].


Marcelo Novaes


III. Pontes sobre a Dor e o Riso.


dos risíveis amores


bem vindos
todos somos.
uns sós.
não obstante
: moramos na mesma concha


não sabe? pois! que saiba
: não perder as asas,
não ser ilha.


porra, falamos a mesma língua!


vamos de barco
pra o paraíso
quiça o não.


Nina Rizzi


Thirthankaras (“Construtores de Pontes”)


Esqueça os nãos.
[Precisas de Fôlego
e de Crença. De Tanta
Coisa...].


Vamos, de mãos dadas, até
uma Terra Pura, administrada
por um Cristo ou Buda.


Mas há de ser a pé.
E de mãos dadas.


[O barco se deixa à margem
do rio. Não se carrega nas
costas. Mesmo largas].


Por aqui, deixamos o
que é risível: sonhos
ou namoradas. As asas
falsas, o fôlego emprestado
por sintéticas substâncias.


Construiremos uma ponte
sobre o Nada: com Nossos
Passos.


[Thirthankaras: construtores de
pontes, como os jainas: Mahavira,
Mahatma Gandhi. Ou Travessias
por Água: Santa Maria, Pinta e Nina].


Marcelo Novaes


IV.Luxúria a Cem Quilômetros por Hora.


Top Bus Coletivo


o coletivo balança
em uma hora
ele para
: sou a próxima a descer


(dar um bom jeito de fazê-la
me perdoar pelo
mau-humor-tempo-encaixe
pelo que está por vir)


vejo azulejos cabelos
cine-luxúria
e nada é capaz de me demo-ver
do coletivo próximo
: mercados e rios e ervas
e o findar dessas
minhas letras
cAmBaLe-anTEs.


só o coletivo vai parar
(e por um instante mísero)
tudo o mais seguirá
na mais tediante
normalidade
: a fármacia e os vidros
e minha existenciazinha
(se ela não suportar
polite-ísmos
manhãs-descafei-nadas)


até o próximo coletivo.


Nina Rizzi


O Desejo é Riso Amplo no Coletivo Top Top


Você será a próxima
a tentar descer dessa
geringonça que anda
[com mais patas,
dentro, do que
rodas].


Se muito estiverem no teu
caminho, terás de passar à
força.[Quem se importa?!
Cada qual reclama de Cada
Outro para o Terceiro Olhar
Anônimo, do Desencontro a
Três: Certeiro. A Vida - dentro
e fora do Bus Top-Top -, quase
sempre, é pouco mais que viver
num Coletivo Pardieiro].


Prossigamos. Perdoo teu mau
humor e o pouco encaixe de meu
púbis no teu cóccix, do teu perfume
com o meu suor, do meu jeito com o
teu humor. [Mas já está bom, convenhamos.
Vamos que vamos, bem embalados. E esse
ajuste médio, num coletivo top top, já é raro,
e é o que mais prezo. Sou capaz de te seguir
do ponto em que você descer, até o Infinito,
se mantiver, nesse teu rosto de mulher, esse
Amplo e Numinoso Rizzo].


Eu sei. Você vê o que está fora,
e pode ser Tédio o nome que a Isso
melhor se dê. Eu sonho rios e ervas
no cheiro do teu cabelo, arrisco a mão
nas tuas ancas [obras-primas da Criação],
e nada é capaz de demover-me de cambalear
pra dentro de você.


Até sentir as letras cambaleando no
pensamento no que pretendo dizer
pra entrar em você o mais logo o mais
cedo [meu veículo fundo e privado], a
partir de nossa próxima manhã juntos.


[Sim. Dê o sinal, que eu desço...]


Marcelo Novaes


V. Sem Peso.


da insustentável leveza


: assim leve. foi a segunda vez que ouviu alguém dizer exatamente o que pensava (ou queria) sobre si. ela, agora, e aquele garotinho de onze anos. lá um tempo atrás. um ano louco, rumando as sutilezas e subjetividades.


: tranquila. zen. disse o menino. pra o seu ser se encher de todo afeto que há no mundo. e dessa feita foram as lágrimas. a face seca. os olhos doídos de segurar o peso.


apenas olhou com seus olhos-ternura-furta-cor a moça que a via. via.


Nina Rizzi


O Eterno nos Olhos


Eu era um menino de
onze anos, e também era
menina. Como ela queria ou
quisera. Ambos eu era.


E eu a vi leve e a disse leve,
com sutilezas de garotinho que
as faces torna secas, e empilha
flocos de neve [imaginários]
nas férias tão breves.


Mas ela era assim, como eu
Era, ambos os sexos. E todo
o olhar Zen também havia,
sem peso, a preencher-nos
os olhos e os dias.


Desde então, o afeto que era
no mundo, hoje é dobrado. E
não caiu [porque sem peso]
das bordas dos olhos molhados
que éramos nós mesmos.


Continuamos sendo.
Ambos. Vemo-nos, como
se, ali, soubéssemos todo
o Tempo.
Eterno.


Marcelo Novaes


VI. Bússola dos Náufragos.
Ô: pretérito-imperfeito


não quero mais saltar
de abismos tão baixos
não vale medir
(se)
que perna quebra,
se um olho se cala
: a queda sou eu


rodo logo, recuo, retorno
aos meus velhos discos
rebolados em lixos
: ô pretérito-imperfeito


não quero janelas
ah
só um precipício
o mar


: só jogar
em búzios
meu corpo


pensava num voo
pobre-crisálida
: o corpo não basta
tudos. existe


Nina Rizzi


Bússola dos Náufragos


Não basta medir-te
em pedaços: és inteira
mesmo que te quebres
[mãos, tronco, braços].


[E, no mar, pairas:
bússola dos náufragos].


Antes da Queda,
A Pirueta: lagarta
esperneando na
crisálida. Lenta.


Se tiver sorte e teu
corpo se desfizer em
búzios [em transe e
metamorfose], lanço-os
na areia e leio meu Orixá,
antes do mergulho.


Assim, fecho meu corpo
ao teu canto de sereia...].


Marcelo Novaes


VII. Das Gatas da Gata & Outros Gatos.


das antiguidades não obsoletas


-=cecília=-


gemidos da minha gata.
siamesa. miscigenada.
minha lânguida gata
magra se enrola caracol
eu rodopio
lâmbda
lambida...


corre treteira
pra cima do telhado
derruba tinta
em minha camiseta
subo borboleta
até a chaminé.


minha gata é preta.
ainda bem que gosto.


pula de pé
no meu colo,
só atira certeiro.


platão me deu
medéia
minha gata
multi-étnica. ego. cecília


-=uma melodia=-


não posso fazer as coisas
pararem de tremer,
se tudo o que quero
é que o mundo bambeie
ao nosso redor
minimalisticamente como um falso jazz
ao provocar terremotos
em terras férteis e distantes;
não corte o blues!
é que ele estremece


Nina Rizzi


Gatas da Gata & Outros Gatos


Tua gata geme, e eu sei
como. Minha gata e meu
gato ronronam: Zaratustra
e Zara.


Tua gata não parece
tão vetusta: lânguida
e enrolada.


Que idéia boa, esta
[platônico-certeira],
que salta e pula no
seu colo, volta a
saltar e pula no
seu colo.


Lambe a sua cara
e as orelhas.


Tu gemes e o chão
treme - que a carne
e a terra são frágeis,
baby. E afinas, mais,
os teus falsetes.


[Acordando musas,
e animais. Gatas e
serpentes].


Marcelo Novaes
*

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