quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ultimatum

Flores para Nina: Homo Luddens

cecília, temo ser esse nosso último encontro, ultimatum dessa teia de analogias que te envolvo e não, não pode ser nada bom, dizia. ao mesmo passo que não, não é nada bom que me ligue e desligue antes de eu atender e depois não me atenda, como se eu fosse um engano em sua agenda de contatos. é quarta, e você não vai mais pra universidade às quartas, talvez nunca mais, talvez phd e eu nunca saberei, nossos caminhos sempre foram bifurcados, não me caminha e eu preciso de carinho, lembra: sou uma derramada.

a catalisação disso tudo, cecília, foi um menino ontem, uma criança, como essas que você gosta de falar e ver, mas não tem paciência e não quer ter. eu ainda te pensava com o tu tu tu do telefone nas mãos quando ele pegou uma migalha de pão na mesa ao lado, uma migalha sem recheio e só miolo que não servia mais a quem podia pagar. nossos olhos se encontraram no instante em que atestava sua miséria material, seus olhos iluminaram, puros, tão puros, meu deus do céu, tão cheios de vergonha. pode pegar, eu disse. experimentou um pedaço e deixou ali um resto, como para me provar que era só uma curiosidade de criança, uma gula que em nada se relacionava com os trapos que vestia e a sujeira que lhe vestia os cabelos e a pele. então se sentou na mesa à minha frente e ficou a olhar fixamente pra uma terceira mesa, a da mulher com três crianças, decerto seus filhos. cecília, lembra quando eu te vi pela terceira vez e se misturou o tártaro e o olimpo, você pode lembrar os meus olhos? você disse que eram vitrais mudando de cor com o céu, por você, catedral que habitava. pois era esse o olhar do menino, do saí quando vê a serpente, do tigre de olhos moles pronto pro ataque, da mulher que se deixa escorregar quando faz amor. ele olhava a mãe como se a reconhecesse, mais que quisesse. então começou a pegar as cadeiras que restavam vazias pelo salão e as juntou num círculo monumental à sua volta. lhe ofereci uma tapioca e ele disse "no, papa", apontando ao invisível. não era italiano, quase mudo a criaturinha. sai para que não precisasse me representar seus desejos mais ardentes, o olhando ainda algum tempo à distância, a confortável distância dos serezinhos que veem e falam e compram pães sem precisar compartilhar.

e é assim também esse nosso quarto ato que se desvela: saio para que não tenha que representar. e te olho, sorrindo, à distância. um beijo à distância, sorrindo. te bastam as distâncias, eu digo basta, bêbeda, louca e clown como quem escrevesse poética nas bodas de diamante, sorrindo e distante.

nina rizzi
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1 comentários:

Gustavo Gomes de Matos disse...

com certeza, um dos mais belos poemas que li nos últimos anos! grandioso, amplo! Avante, Nina!