"óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados" - jota mombaça
prelúdio pra rapsódia
saudades eu tenho de um qualquer que me habitasse;
de toda terra ou pedra, terrivelmente linda, real, dorida.
saudades dessas que me ficam assim, solidão mais fora que dentro;
dos mitos que ficam existindo dentro de mim.
1º movimento, l'istesso tempo
era o
aniversário dela, a moça que já foi de bienal. depois ela quis ser travesti, eu
não me espantei, comi chantilly sem leite em sua homenagem, com mostarda,
pimenta e um pouco de sangue que consegui espetando os joelhos com o garfo. eu
lembrei do dia de seu trigésimo aniversário, as flores amarelas e o poema de
dylan thomas. comi as flores porque ela não é bondosa, nem deveria. é um modo
de celebrar as idas ânsias, hoje um peso morto como aquele partido conservador
português. ela não respondeu, comi as últimas pétalas com esse pensamento,
quanto bem-me-quer cabe em mal-me-quer, o quanto me havia de
impraticável.
eu não
pensava em nada disso. eu era assistente social tecnicista e utilitarista. aí
que eu encontrei o 'take the power back' e fiquei com pena de ter aprendido
algum inglês como laugh and laughing e essa cultura dominante nessas outras
coisas que missy elliot não dizia com o settle for nothing. é bonito o som
dessas palavras pra muito além de concretismo, mas só isso. nem era meu
aniversário, porque eu não posso aniversariar de mês em mês, apesar de ver
àquela, ó presente, de ano em ano. mas eu não posso aniversariar todo mês ou
toda semana, mesmo com esses presentes que chegam na caixa. eu tenho alguém que
me presenteia, nos esbofeteamos quase toda manhã como um jeito de buscar a
mágoa em lugar de nuvens, como a vida deve ser ou não, aqui é que é assim viver
a vida.
e tem
ainda 'killing in the name', não importa o resto, só isso, o 'killing in the
name'. a indicação de alguém que já me admirou - não hoje, não depois de eu
beijar uma mulher quando todos os homens me disputavam e se ofereciam e eu só
pensava e bebia o homem que não estava com a salsinha ou talvez fosse coentro,
o coentro que em suas mãos pra minha boca, só assim das suas mãos pra minha
boca é que podia ser bom e é maravilhoso, foi -. sim, não depois de eu beijar a
mulher quando era o homem distante e aquele ali que já me admirou sabia. sabia
e me chamou de falsa. fake, na verdade, que é como ele tem sido depois de ter
descoberto em sua poesia - aquela poesia precisa, articulada, que não se
desperdiça e é indispensável -, ter descoberto que a poesia flui e é fluída,
sincopada como seus rios ao gosto de ungaretti. a indicação desse homem fez o
outro escrever, depois de lembrar de outro dizer, sóis, tanta gente diz e eu
repito: nome é destino.
tudo era
poema, não isso. era o aniversário da mulher que comi as flores e as flores e o
seu nome.
2º
movimento, adágio com esprezione
era
preciso dizer, quase como um rito, como uma premonição de catástrofe, todo o
tempo quase e o tempo quando. ainda com a insegurança da repetição. eu
queria gritar sim, porque não? com aquela vozinha da joanna ou da rachael que
me tocam tanto, tanto. vê, as repetições, são próprias do meu discurso que
preciso todo o tempo lhe dizer. assim como não sei conjugar os verbos, é e não
era. e não é que você não saiba, mas é que além do tempo é agora. a colher que
estala a farinha d'água alheia ao meu não gostá-la. e eu gosto quando minha
gata mais arisca se derrama em minhas folhas. grávida, se contorce e amontoa,
ronrona. o homem me disse que gostoso só pode ser comida ou sexo, porque eu
dizia que era gostoso o alto-mar e a gata. talvez ele não fosse mergulhador e
uma pessoa que não gosta de gatos não entende nada de sensibilidade e gostar. e
é gostoso quando chega a outra gata e massageia minha cintura e sexo com as
unhas. a vida eterna, amor, disse ele. e lembrei dessa que era a boa vida. a
ala das baianas amarelas. as flores amarelas não restituem teus lábios. é uma
fera selvagem e eu nunca os vi, mas encontrei no lixo uma mala
cor-de-rosa-choque pra carregar toda disritmia. e o homem, sim, você é o homem,
nunca mais me escreveu uma linha. uma linha era o que separava minha alma da
tua. te viram numa livraria acompanhado de uma mulher, poeta. eu não lembro
quando fui mulher e tenho medo de esquecer teus olhos. a mulher era amarela
como teus olhos hepáticos. só um girassol ou o miolo das margaridas podem ser verdadeiramente
amarelos, belos. e as baianas de todos os santos. um riso puro e solto a
contaminar cada um dos dentes até os olhos e garfos e então tudo ser uma só
gargalhada. era boa a vida, uma pequena morte todo dia. e você não veio buscar
meu fígado ensanguentado. ao invés de te esquecer, lambo do choro às feridas,
mostro a faixa litorânea e rio ao homem que diz me querer. ele é amarelo como
meu riso. mas aí eu fiquei ríspida, dizia o homem que era você quando eu
parecia te amolar, faca de dois gumes. era preciso dizer que te amo, todo
tempo. é preciso dizer, você sabe, mas te amo é preciso dizer, que além do
tempo é agora. gostoso é o que gosto, araim.
3º movimento: andante
então descruzou as pernas e recostou-se na
cadeira. ficou ali mirando as pessoas como se lhes lesse, daquele jeito em que
olhar atravessa as gentes sem ver. um minuto ou outro vinha a imagem de dois
dedos displicentes a brincar com um lóbulo de orelha ou um lábio superior. a
dorzinha do tédio que lhe pressionava a testa em pouco passava, estaria sentada
na padaria e chegaria àquela das práticas assustadoras, assim lhe parecia.
coisa com coisa era a lembrança dessa; o dia em que a mãe lhe deu um vestido branco
e longo como tapa na cara; quando o pai bêbado bulinou suas cobertas; as
cobertas e o sujeito a morder os ombros da moça. ah, lamber a mulher e morder
até que seu corpo seja uma mancha no seu. a mulher, esparramar-se a mancha. a
moça sem mancada a relerrelerrelerreler os diálogos de duras pra hiroshima, mon
amour. sem mancada com sua sabinada e aquela mulher ancestral, a mulher
ancestral e o tempo em que fazia poesia. agora não, perde os olhos como quem
pega piaba. talvez os peixes morram gozando e isso explicava seus olhos. os
olhos da moça atravessando as gentes no nada. fica assim amando as coisas que
insistentemente existem à sua volta como a virgem maria e, ai, essa virgindade.
ali amando o tempo em que só podia amar o etéreo e irrealizável. aqui ardendo
pelo em pouco, um enfim, efêmero, fractal e palpável arder, arder, arder. una
pequeña viajera.
4º movimento, allegro vivace
parece
até uma sessão masoquista, eu aqui sentada nesse banco imundo de rodoviária, as
pessoas chegando pros encontros com risos e vindimas e esse calor infernal e
tantos letreiros que me dizem tanto de nós. devia ser lindo a gente a se
enroscar num canto de nome olhos d'água. ou talvez esse seja o meu lugar e não
o nosso, ou só teus olhos d'água.
caridade,
motorista? não, as estradas é que deviam me ter caridade. eu aqui, impregnada
de tudo que te é (não motorista, já não te falo, não é você que vejo, que não
me leva daqui), esses livros e essas cartas e poemas impublicáveis que imprimi
na memória e na língua e que me dói a cabeça. esses teus radicalismos que
carrego na bolsa pra distribuir nos assentamentos.
um
mundinho tão casca de nós e a gente não ter se esbarrado de novo, nesses
letreiros e bancos imundos e em meus poemas pra dentes, ó, absurdidade. fazemos
inveja aos pregões novaiorquinos. é isso, muita especulação, investimentos de
risco e a gente nem gosta de apostas e roletas, só dos russos que dizem desse
frio que nos encharca.
ah,
menino, me viciei tão baixinho em teus hábitos estúpidos, em teus lábios sujos
de me falar e ter e me amarrar e rasgar cada pedacinho e comer em autotrofagia
que me pergunto cadê os poemas que te enviei? por que não podia simplesmente
devolver cada um dos pelos e pentelhos que te entreguei em histeria? é muito
calor, é muito calor e eu tiro os cabelos que me tapam os olhos e me engasgam e
a minha cabeça continua a doer. pra onde será que esses ônibus vão se não me
levam? de onde vem tanta gente? o nordeste inteiro e a gente nem sol.
você
gostava tanto das minhas sandálias de cangaceiro, a gente fazendo moda de
sertão alegre e pirilampo e aquelas frutas lindas, com uns nomes de se
abocanhar em pelo. pelo apelido, mas era o nome real que me pegava o gosto, mas
que agora não lembro de tanto que me dói a cabeça de tanto te lembrar esses
pelos que isaías falava que de tão escarlate o pecado, derretia branquinho como
a neve. três quilômetros morro abaixo a centetrinta por hora, em menos de um
minuto se chegava ao destino e nós nem esqui. sputinik, bolchevique, tecnicolor
e eu e você nem lua. minhas pupilas dilatadas e quem sabe também as tuas.
o sujeito
da princesa dos inhamuns veio lá de seu guichê à minha plataforma e fica aqui
me cortejando e me olhando e me querendo ler tudo e você precisa fazer um
transplante e esse meu rim desgraçado tinha que doer justo agora? e essas
biomédicas apolíneas e meigas maledetas que não me aceitam a carne mijada. os
ônibus lotados, o asfalto derretendo, o pneu furado, o motor arreado, a porra
hipócrita da família pequeno-burguesa e feliz, tudo isso no meio do nosso
encontro, liquefazendo o rim que devo te entregar, mas que não consigo, não
consigo e não me depilo que teus pelos vieram assim, meio que por acaso dentro
daquele livro roubado de supermercado e desde então quantas mil vezes minha
compulsão me levou a te reler PALAVRA, LETRA escArlate e RaINHA no tabuleiro.
você já comeu biscoitos de farinha d'água? é a falácia dos pães-de-queijo que
vem sem beijo. quantas bonecas de mestre vitalino, quantas jangadas e eu e tu e
eles nem aurora, sei que vou morrer não sei o dia e talvez você nem saberá que
os sete orelhões são da rua que não ladrilhei, meu amor, e posso findar qual
anunciação do apocalipse se não te entrego esse rim.
por que
esse cara insiste tanto que eu lhe compre os óculos e relógios? é assim tão
óbvio que meus olhos d'água precisam secar, isso dói mais em mim que nele, pode
acreditar e que esse meu rim tá atrasado até ele já sabe que tá escorrendo
sangue pelas minhas mãos calejadas de esperar a safra do algodão doce, mas isso
não ajuda, não ajuda, assim como não ajuda esse cartão de sorrento que tenho na
carteira vazia. claro que na itália fazem docinhos deliciosos de frutas azedas
e ESPINHENTAS! sim, feito pequi com arroz, com frango não que detesto frango,
digo, sou sensível demais pra detestá-los e não posso comê-los a não ser que te
entregasse meu rim a tempo e pudéssemos fazer um charque de galinha, um steak
até, nem que fosse lá, naquela minha esquina vizinha, a que me fugiu com a
família feliz e netos e onde sua pele brilhava como a de um escravo à venda no
mercado de olinda e seu nariz anguloso e eu lá nu em vermelho modinha gli ochi
per te. você devia ter me escutado contr'alto:
volevo dirti solo che
sei sempre tu la mia allegria
che quando parli insieme a lei
diventa folle gelosia
per tutto quello che mi dai
anche quando non lo sai
questo io volevo dire a te
di come quando non ci sai
io mi perdo sempre un po'
poi mi accorgo che non so
più divertirmi senza te
invece quando stai con me
anche il grigio intorno a noi
i colora della vita che gli dai
com'è difficile dire tutto questo a te
che d'amore non parli mai
non ne parli mai con me...
hai paura come me...
os ônibus não vêm do carnaval, do natal e eu viro duna, maresia, ruína, olhos d'água. faço cantilhenas, grito e choro e esperneio que nem uma criança cricrinclame com toda força e as estradas interditadas e esse rim em minhas mãos de concha virando ostra. porra... eu encaro o sol. encaro sim. recoloco as pernas que te dei naquela feita gloriosa e vou. cuspo e vou a nado se preciso, é preciso! voltando de canindé via tabapuá é calor eu sei, mas é preciso sonhar sabendo a hora de partir. não tenho cavalo, nem burro brabo ou pau de sebo, mas a princesa dos inhamuns vem, tem que vir, tem que vir e aí sim: rícino, rim, rir, ô sertão sanguidolente.
*
1 comentários:
Nina,a fantasia e a realidade se permeiam como pernas de amantes e deixam um gosto forte de pungente paixão pelas pessoas por sabe-las inteiras(luz e sombra)!Ao ter descobrir sinto que estou apreendendo mais sobre a vida!Graça
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