domingo, 27 de janeiro de 2019

rapsodia, quasi una fantasia



                              Poemacolagem de Samuel: 'desconcerto para rizzi ávida e os cães frenéticos da rua', 2017.

"óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados" - jota mombaça

 prelúdio pra rapsódia

saudades tenho de um qualquer que me habitasse;
de toda terra ou pedra, terrivelmente linda, real, dorida.

saudades dessas que me ficam assim, solidão mais fora que dentro;
dos mitos que ficam existindo dentro de mim.


1º movimento, l'istesso tempo

era o aniversário dela, a moça que já foi de bienal. depois ela quis ser travesti e eu comi chantilly sem leite e sem gordura em sua homenagem, pra comemorar. com mostarda, pimenta e um pouco de sangue que consegui espetando os joelhos com o garfo. eu lembrei do dia de seu trigésimo aniversário, as flores amarelas e o poema de dylan thomas. comi as flores porque ela não é bondosa, nem deveria. é um modo de celebrar as idas ânsias, hoje um peso morto como partidos políticos, superávit primário, uma escola conservadora. ela não respondeu, comi com esse pensamento, quanto bem-me-quer cabe em mal-me-quer, o quanto me havia de impraticável. 

eu não pensava em nada disso. eu era assistente social tecnicista e utilitarista. Ou era educadora ou poeta mainstream. aí que eu encontrei o 'take the power back' e fiquei com pena de ter aprendido algum inglês como laugh and laughing a cultura dominante, nessas outras coisas que missy elliot não dizia em settle for nothing. é bonito o som dessas palavras pra muito além de concretismo, mas só isso. nem era meu aniversário apesar de ver àquela, ó presente de ano em ano. eu tenho alguém que me presenteia, nos esbofeteamos quase toda manhã como um jeito de buscar a mágoa em lugar de nuvens, como a vida deve ser ou não, aqui é que é assim viver a vida.

não importa o resto, só isso. a indicação de alguém que já me admirou - não hoje, não depois de eu beijar uma mulher quando todos os homens me disputavam e se ofereciam e eu só pensava e bebia o homem que não estava com a salsinha ou talvez fosse coentro, o coentro que em suas mãos pra minha boca, só assim das suas mãos pra minha boca é que podia ser bom e é maravilhoso, foi -. sim, não depois de eu beijar a mulher quando era o homem distante e aquele ali que já me admirou sabia. sabia e me chamou de falsa. fake, na verdade, que é como ele tem sido depois de ter descoberto em sua poesia - aquela poesia precisa, articulada, que não se desperdiça e é indispensável -, ter descoberto que a poesia flui e é fluída, sincopada como seus rios ao gosto de ungaretti. a indicação desse homem fez o outro escrever, depois de lembrar de outro dizer, sóis, tanta gente diz e eu repito: nome é destino.

tudo era poema, não isso. era o aniversário da mulher que comi as flores e as flores e o seu nome.


2º movimento, adágio com esprezione

era preciso dizer, quase como um rito, como uma premonição de catástrofe, todo o tempo quase e o tempo quando. ainda com a  insegurança da repetição. eu queria gritar sim, com aquela vozinha da joanna ou da rachael que me tocam tanto tanto. vê, as repetições, são próprias do meu discurso que preciso todo o tempo lhe dizer. assim como não sei conjugar os verbos, é e não era. e não é que você não saiba, mas é que além do tempo é agora. a colher que estala a farinha d'água alheia ao meu não gostá-la. e eu gosto quando minha gata mais arisca se derrama em minhas folhas. grávida, se contorce e amontoa, ronrona. o homem me disse que gostoso só pode ser comida ou sexo, porque eu dizia que era gostoso o alto-mar e a gata. talvez ele não fosse mergulhador e uma pessoa que não gosta de gatos não entende nada de sensibilidade e gostar. e é gostoso quando chega a outra gata e massageia minha cintura e sexo com as unhas. a vida eterna, amor, disse ele. e lembrei dessa que era a boa vida. a ala das baianas amarelas. as flores amarelas não restituem teus lábios. é uma fera selvagem e eu nunca os vi, mas encontrei no lixo uma mala cor-de-rosa-choque pra carregar toda disritmia. e o homem, sim, você é o homem, nunca mais me escreveu uma linha. uma linha era o que separava minha alma da tua. te viram numa livraria acompanhado de uma mulher, poeta. eu não lembro quando fui mulher e tenho medo de esquecer teus olhos brilhantes. todos olhos são brilhantes você disse, mas não é verdade que todos olhos brilham como o seu brilhava quando era um cavalo domado sob meu corpimenso. a mulher ao seu lado ali na livraria, amarela como teus olhos hepáticos. só um girassol ou o miolo das margaridas podem ser verdadeiramente amarelos, belos. e as baianas de todos os santos. um riso puro e solto a contaminar cada um dos dentes até os olhos e garfos e então tudo ser uma só gargalhada. era boa a vida, uma pequena morte todo dia. e você não veio buscar meu fígado ensanguentado. ao invés de te esquecer, lambo do choro às feridas, mostro a faixa litorânea e rio ao homem que diz me querer. ele é amarelo como meu riso. mas aí eu fiquei ríspida, dizia o homem que era você quando eu parecia te amolar, faca de dois gumes. era preciso dizer que te amo, todo tempo. é preciso dizer, você sabe, mas te amo é preciso dizer, que além do tempo é agora. gostoso é o que gosto, araim.


3º movimento: andante

então descruzou as pernas e recostou-se na cadeira. ficou ali mirando as pessoas como se lhes lesse, daquele jeito em que olhar atravessa as gentes sem ver. um minuto ou outro vinha a imagem de dois dedos displicentes a brincar com um lóbulo de orelha ou um lábio superior. a dorzinha do tédio que lhe pressionava a testa em pouco passava, estaria sentada na padaria e chegaria àquela das práticas assustadoras, assim lhe parecia. coisa com coisa era a lembrança dessa; o dia em que a mãe lhe deu um vestido branco e longo como tapa na cara; quando o pai bêbado bolinou suas cobertas; as cobertas e o sujeito a morder os ombros da moça. ah, lamber a mulher e morder até que seu corpo seja uma mancha no seu. a mulher, esparramar-se a mancha. a moça sem mancada a relerrelerrelerreler os diálogos de duras pra hiroshima, mon amour. sem mancada com sua sabinada e aquela mulher ancestral, a mulher ancestral e o tempo em que fazia poesia. agora não, perde os olhos como quem pega piaba. talvez os peixes morram gozando e isso explicava seus olhos. os olhos da moça atravessando as gentes no nada. fica assim amando as coisas que insistentemente existem à sua volta como a virgem maria e, ai, essa virgindade. ali amando o tempo em que só podia amar o etéreo e irrealizável. aqui ardendo pelo em pouco, um enfim, efêmero, fractal e palpável arder, arder, arder. una pequeña viajera.


4º movimento, allegro vivace

parece até uma sessão masoquista, eu aqui sentada nesse banco imundo de rodoviária, as pessoas chegando pros encontros com risos e vindimas e esse calor infernal e tantos letreiros que me dizem tanto de nós. devia ser lindo a gente a se enroscar num canto de nome olhos d'água. ou talvez esse seja o meu lugar e não o nosso, ou só teus olhos d'água.

caridade, motorista? não, as estradas é que deviam me ter caridade. eu aqui, impregnada de tudo que te é (não motorista, já não te falo, não é você que vejo, que não me leva daqui), esses livros e essas cartas e poemas impublicáveis que imprimi na memória e na língua e que me dói a cabeça. esses teus radicalismos que carrego na bolsa pra distribuir nos assentamentos.

um mundinho tão casca de nós e a gente não ter se esbarrado de novo, nesses letreiros e bancos imundos e em meus poemas pra dentes, ó, absurdidade. fazemos inveja aos pregões novaiorquinos. é isso, muita especulação, investimentos de risco e a gente nem gosta de apostas e roletas, só dos russos que dizem desse frio que nos encharca.

ah, menino, me viciei tão baixinho em teus hábitos estúpidos, em teus lábios sujos de me falar e ter e me amarrar e rasgar cada pedacinho e comer, hay que comer, que me pergunto cadê os poemas que te enviei? por que não podia simplesmente devolver cada um dos pelos e pentelhos que te entreguei em histeria? é muito calor, é muito calor e eu tiro os cabelos que me tapam os olhos e me engasgam e a minha cabeça continua a doer. pra onde será que esses ônibus vão se não me levam? de onde vem tanta gente? o nordeste inteiro e a gente nem sol.

você gostava tanto das minhas sandálias de cangaceiro, a gente fazendo moda de sertão alegre e pirilampo e aquelas frutas lindas, com uns nomes de se abocanhar em pelo. pelo apelido, mas era o nome real que me pegava o gosto, mas que agora não lembro de tanto que me dói a cabeça de tanto te lembrar esses pelos que isaías falava que de tão escarlate o pecado, derretia branquinho como a neve. três quilômetros morro abaixo a centetrinta por hora, em menos de um minuto se chegava ao destino e nós nem esqui. sputinik, bolchevique, tecnicolor e eu e você nem lua. minhas pupilas dilatadas e quem sabe também as tuas.

o sujeito da princesa dos inhamuns veio lá de seu guichê à minha plataforma e fica aqui me cortejando e me olhando e me querendo ler tudo e você precisa fazer um transplante e esse meu rim desgraçado tinha que doer justo agora? e essas biomédicas apolíneas e meigas maledetas que não me aceitam a carne mijada. os ônibus lotados, o asfalto derretendo, o pneu furado, o motor arreado, a porra hipócrita da família pequeno-burguesa e feliz, tudo isso no meio do nosso encontro, liquefazendo o rim que devo te entregar, mas que não consigo, não consigo e não me depilo que teus pelos vieram assim, meio que por acaso dentro daquele livro roubado de supermercado e desde então quantas mil vezes minha compulsão me levou a te reler PALAVRA, LETRA escArlate e RaINHA no tabuleiro. você já comeu biscoitos de farinha d'água? é a falácia dos pães-de-queijo que vem sem beijo. quantas bonecas de mestre vitalino, quantas jangadas e eu e tu e eles nem aurora, sei que vou morrer não sei o dia e talvez você nem saberá que os sete orelhões são da rua que não ladrilhei, meu amor, e posso findar qual anunciação do apocalipse se não te entrego esse rim.

por que esse cara insiste tanto que eu lhe compre os óculos e relógios? é assim tão óbvio que meus olhos d'água precisam secar, isso dói mais em mim que nele, pode acreditar e que esse meu rim tá atrasado até ele já sabe que tá escorrendo sangue pelas minhas mãos calejadas de esperar a safra do algodão doce, mas isso não ajuda, não ajuda, assim como não ajuda esse cartão de sorrento que tenho na carteira vazia. claro que na itália fazem docinhos deliciosos de frutas azedas e ESPINHENTAS! sim, feito pequi com arroz, com frango não que detesto frango, digo, sou sensível demais pra detestá-los e não posso comê-los a não ser que te entregasse meu rim a tempo e pudéssemos fazer um charque de galinha, um steak até, nem que fosse lá, naquela minha esquina vizinha, a que me fugiu com a família feliz e netos e onde sua pele brilhava como a de um escravo à venda no mercado de olinda e seu nariz anguloso e eu lá nu em vermelho modinha gli ochi per te. você devia ter me escutado contr'alto:

volevo dirti solo che
sei sempre tu la mia allegria
che quando parli insieme a lei
diventa folle gelosia
per tutto quello che mi dai
anche quando non lo sai
questo io volevo dire a te

di come quando non ci sai
io mi perdo sempre un po'
poi mi accorgo che non so
più divertirmi senza te
invece quando stai con me
anche il grigio intorno a noi
i colora della vita che gli dai

com'è difficile dire tutto questo a te
che d'amore non parli mai
non ne parli mai con me...
hai paura come me...

os ônibus não vêm do carnaval, do natal e eu viro duna, maresia, ruína, olhos d'água. faço cantilhenas, grito e choro e esperneio que nem uma criança cricrinclame com toda força e as estradas interditadas e esse rim em minhas mãos de concha virando ostra. porra... eu encaro o sol. encaro sim. recoloco as pernas que te dei naquela feita gloriosa e vou. cuspo e vou a nado se preciso, é preciso! voltando de canindé via tabapuá é calor eu sei, mas é preciso sonhar sabendo a hora de partir. não tenho cavalo, nem burro brabo ou pau de sebo, mas a princesa dos inhamuns vem, tem que vir, tem que vir e aí sim: rícino, rim, rir, ô sertão sanguidolente.

fortaleza, 2008-9
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