Poemacolagem de Samuel: 'desconcerto para rizzi ávida e os cães frenéticos da rua', 2017.
"óperas silenciosas, tímpanos
estilhaçados" - jota mombaça
saudades tenho de um qualquer que me
habitasse;
de toda terra ou pedra, terrivelmente
linda, real, dorida.
saudades dessas que me ficam assim,
solidão mais fora que dentro;
dos mitos que ficam existindo dentro
de mim.
1º movimento, l'istesso tempo
era o aniversário dela, a moça que já
foi de bienal. depois ela quis ser travesti e eu comi chantilly sem leite e sem
gordura em sua homenagem, pra comemorar. com mostarda, pimenta e um pouco de
sangue que consegui espetando os joelhos com o garfo. eu lembrei do dia de seu
trigésimo aniversário, as flores amarelas e o poema de dylan thomas. comi as
flores porque ela não é bondosa, nem deveria. é um modo de celebrar as idas
ânsias, hoje um peso morto como partidos políticos, superávit primário, uma
escola conservadora. ela não respondeu, comi com esse pensamento, quanto
bem-me-quer cabe em mal-me-quer, o quanto me havia de impraticável.
eu não pensava em nada disso. eu era
assistente social tecnicista e utilitarista. Ou era educadora ou poeta
mainstream. aí que eu encontrei o 'take the power back' e fiquei com pena de
ter aprendido algum inglês como laugh and laughing a cultura dominante, nessas
outras coisas que missy elliot não dizia em settle for nothing. é bonito o som
dessas palavras pra muito além de concretismo, mas só isso. nem era meu
aniversário apesar de ver àquela, ó presente de ano em ano. eu tenho alguém que
me presenteia, nos esbofeteamos quase toda manhã como um jeito de buscar a
mágoa em lugar de nuvens, como a vida deve ser ou não, aqui é que é assim viver
a vida.
não importa o resto, só isso. a
indicação de alguém que já me admirou - não hoje, não depois de eu beijar uma
mulher quando todos os homens me disputavam e se ofereciam e eu só pensava e
bebia o homem que não estava com a salsinha ou talvez fosse coentro, o coentro
que em suas mãos pra minha boca, só assim das suas mãos pra minha boca é que
podia ser bom e é maravilhoso, foi -. sim, não depois de eu beijar a mulher
quando era o homem distante e aquele ali que já me admirou sabia. sabia e me
chamou de falsa. fake, na verdade, que é como ele tem sido depois de ter
descoberto em sua poesia - aquela poesia precisa, articulada, que não se
desperdiça e é indispensável -, ter descoberto que a poesia flui e é fluída,
sincopada como seus rios ao gosto de ungaretti. a indicação desse homem fez o outro
escrever, depois de lembrar de outro dizer, sóis, tanta gente diz e eu repito:
nome é destino.
tudo era poema, não isso. era o
aniversário da mulher que comi as flores e as flores e o seu nome.
2º movimento, adágio com esprezione
era preciso dizer, quase como um
rito, como uma premonição de catástrofe, todo o tempo quase e o tempo quando.
ainda com a insegurança da repetição. eu queria gritar sim, com aquela
vozinha da joanna ou da rachael que me tocam tanto tanto. vê, as repetições,
são próprias do meu discurso que preciso todo o tempo lhe dizer. assim como não
sei conjugar os verbos, é e não era. e não é que você não saiba, mas é que além
do tempo é agora. a colher que estala a farinha d'água alheia ao meu não
gostá-la. e eu gosto quando minha gata mais arisca se derrama em minhas folhas.
grávida, se contorce e amontoa, ronrona. o homem me disse que gostoso só pode
ser comida ou sexo, porque eu dizia que era gostoso o alto-mar e a gata. talvez
ele não fosse mergulhador e uma pessoa que não gosta de gatos não entende nada
de sensibilidade e gostar. e é gostoso quando chega a outra gata e massageia
minha cintura e sexo com as unhas. a vida eterna, amor, disse ele. e lembrei
dessa que era a boa vida. a ala das baianas amarelas. as flores amarelas não
restituem teus lábios. é uma fera selvagem e eu nunca os vi, mas encontrei no
lixo uma mala cor-de-rosa-choque pra carregar toda disritmia. e o homem, sim,
você é o homem, nunca mais me escreveu uma linha. uma linha era o que separava
minha alma da tua. te viram numa livraria acompanhado de uma mulher, poeta. eu
não lembro quando fui mulher e tenho medo de esquecer teus olhos brilhantes.
todos olhos são brilhantes você disse, mas não é verdade que todos olhos
brilham como o seu brilhava quando era um cavalo domado sob meu corpimenso. a
mulher ao seu lado ali na livraria, amarela como teus olhos hepáticos. só um
girassol ou o miolo das margaridas podem ser verdadeiramente amarelos, belos. e
as baianas de todos os santos. um riso puro e solto a contaminar cada um dos
dentes até os olhos e garfos e então tudo ser uma só gargalhada. era boa a
vida, uma pequena morte todo dia. e você não veio buscar meu fígado
ensanguentado. ao invés de te esquecer, lambo do choro às feridas, mostro a
faixa litorânea e rio ao homem que diz me querer. ele é amarelo como meu riso.
mas aí eu fiquei ríspida, dizia o homem que era você quando eu parecia te
amolar, faca de dois gumes. era preciso dizer que te amo, todo tempo. é preciso
dizer, você sabe, mas te amo é preciso dizer, que além do tempo é agora.
gostoso é o que gosto, araim.
3º movimento: andante
então descruzou as pernas e recostou-se na cadeira. ficou ali mirando as
pessoas como se lhes lesse, daquele jeito em que olhar atravessa as gentes sem
ver. um minuto ou outro vinha a imagem de dois dedos displicentes a brincar com
um lóbulo de orelha ou um lábio superior. a dorzinha do tédio que lhe
pressionava a testa em pouco passava, estaria sentada na padaria e chegaria
àquela das práticas assustadoras, assim lhe parecia. coisa com coisa era a
lembrança dessa; o dia em que a mãe lhe deu um vestido branco e longo como tapa
na cara; quando o pai bêbado bolinou suas cobertas; as cobertas e o sujeito a
morder os ombros da moça. ah, lamber a mulher e morder até que seu corpo seja
uma mancha no seu. a mulher, esparramar-se a mancha. a moça sem mancada a
relerrelerrelerreler os diálogos de duras pra hiroshima, mon amour. sem mancada
com sua sabinada e aquela mulher ancestral, a mulher ancestral e o tempo em que
fazia poesia. agora não, perde os olhos como quem pega piaba. talvez os peixes
morram gozando e isso explicava seus olhos. os olhos da moça atravessando as
gentes no nada. fica assim amando as coisas que insistentemente existem à sua
volta como a virgem maria e, ai, essa virgindade. ali amando o tempo em que só
podia amar o etéreo e irrealizável. aqui ardendo pelo em pouco, um enfim,
efêmero, fractal e palpável arder, arder, arder. una pequeña viajera.
4º movimento, allegro vivace
parece até uma sessão masoquista, eu aqui sentada nesse banco imundo de
rodoviária, as pessoas chegando pros encontros com risos e vindimas e esse
calor infernal e tantos letreiros que me dizem tanto de nós. devia ser lindo a
gente a se enroscar num canto de nome olhos d'água. ou talvez esse seja o meu
lugar e não o nosso, ou só teus olhos d'água.
caridade, motorista? não, as estradas é que deviam me ter caridade. eu
aqui, impregnada de tudo que te é (não motorista, já não te falo, não é você
que vejo, que não me leva daqui), esses livros e essas cartas e poemas
impublicáveis que imprimi na memória e na língua e que me dói a cabeça. esses
teus radicalismos que carrego na bolsa pra distribuir nos assentamentos.
um mundinho tão casca de nós e a gente não ter se esbarrado de novo,
nesses letreiros e bancos imundos e em meus poemas pra dentes, ó, absurdidade.
fazemos inveja aos pregões novaiorquinos. é isso, muita especulação,
investimentos de risco e a gente nem gosta de apostas e roletas, só dos russos
que dizem desse frio que nos encharca.
ah, menino, me viciei tão baixinho em teus hábitos estúpidos, em teus
lábios sujos de me falar e ter e me amarrar e rasgar cada pedacinho e comer,
hay que comer, que me pergunto cadê os poemas que te enviei? por que não podia
simplesmente devolver cada um dos pelos e pentelhos que te entreguei em
histeria? é muito calor, é muito calor e eu tiro os cabelos que me tapam os
olhos e me engasgam e a minha cabeça continua a doer. pra onde será que esses
ônibus vão se não me levam? de onde vem tanta gente? o nordeste inteiro e a
gente nem sol.
você gostava tanto das minhas sandálias de cangaceiro, a gente fazendo
moda de sertão alegre e pirilampo e aquelas frutas lindas, com uns nomes de se
abocanhar em pelo. pelo apelido, mas era o nome real que me pegava o gosto, mas
que agora não lembro de tanto que me dói a cabeça de tanto te lembrar esses
pelos que isaías falava que de tão escarlate o pecado, derretia branquinho como
a neve. três quilômetros morro abaixo a centetrinta por hora, em menos de um
minuto se chegava ao destino e nós nem esqui. sputinik, bolchevique, tecnicolor
e eu e você nem lua. minhas pupilas dilatadas e quem sabe também as tuas.
o sujeito da princesa dos inhamuns veio lá de seu guichê à minha
plataforma e fica aqui me cortejando e me olhando e me querendo ler tudo e você
precisa fazer um transplante e esse meu rim desgraçado tinha que doer justo
agora? e essas biomédicas apolíneas e meigas maledetas que não me aceitam a
carne mijada. os ônibus lotados, o asfalto derretendo, o pneu furado, o motor
arreado, a porra hipócrita da família pequeno-burguesa e feliz, tudo isso no
meio do nosso encontro, liquefazendo o rim que devo te entregar, mas que não
consigo, não consigo e não me depilo que teus pelos vieram assim, meio que por
acaso dentro daquele livro roubado de supermercado e desde então quantas mil
vezes minha compulsão me levou a te reler PALAVRA, LETRA escArlate e RaINHA no
tabuleiro. você já comeu biscoitos de farinha d'água? é a falácia dos
pães-de-queijo que vem sem beijo. quantas bonecas de mestre vitalino, quantas
jangadas e eu e tu e eles nem aurora, sei que vou morrer não sei o dia e talvez
você nem saberá que os sete orelhões são da rua que não ladrilhei, meu amor, e
posso findar qual anunciação do apocalipse se não te entrego esse rim.
por que esse cara insiste tanto que eu lhe compre os óculos e relógios?
é assim tão óbvio que meus olhos d'água precisam secar, isso dói mais em mim
que nele, pode acreditar e que esse meu rim tá atrasado até ele já sabe que tá
escorrendo sangue pelas minhas mãos calejadas de esperar a safra do algodão
doce, mas isso não ajuda, não ajuda, assim como não ajuda esse cartão de
sorrento que tenho na carteira vazia. claro que na itália fazem docinhos
deliciosos de frutas azedas e ESPINHENTAS! sim, feito pequi com arroz, com
frango não que detesto frango, digo, sou sensível demais pra detestá-los e não
posso comê-los a não ser que te entregasse meu rim a tempo e pudéssemos fazer
um charque de galinha, um steak até, nem que fosse lá, naquela minha esquina
vizinha, a que me fugiu com a família feliz e netos e onde sua pele brilhava
como a de um escravo à venda no mercado de olinda e seu nariz anguloso e eu lá
nu em vermelho modinha gli ochi per te. você devia ter me escutado contr'alto:
volevo dirti solo che
sei sempre tu la mia allegria
che quando parli insieme a lei
diventa folle gelosia
per tutto quello che mi dai
anche quando non lo sai
questo io volevo dire a te
di come quando non ci sai
io mi perdo sempre un po'
poi mi accorgo che non so
più divertirmi senza te
invece quando stai con me
anche il grigio intorno a noi
i colora della vita che gli dai
com'è difficile dire tutto questo a te
che d'amore non parli mai
non ne parli mai con me...
hai paura come me...
os ônibus não vêm do carnaval, do natal e eu viro duna, maresia, ruína, olhos d'água. faço cantilhenas, grito e choro e esperneio que nem uma criança cricrinclame com toda força e as estradas interditadas e esse rim em minhas mãos de concha virando ostra. porra... eu encaro o sol. encaro sim. recoloco as pernas que te dei naquela feita gloriosa e vou. cuspo e vou a nado se preciso, é preciso! voltando de canindé via tabapuá é calor eu sei, mas é preciso sonhar sabendo a hora de partir. não tenho cavalo, nem burro brabo ou pau de sebo, mas a princesa dos inhamuns vem, tem que vir, tem que vir e aí sim: rícino, rim, rir, ô sertão sanguidolente.
fortaleza, 2008-9
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