domingo, 18 de março de 2018

sortilégios pra matar o meu benzinho



 tenho uma escova de cerdas macias, como nuvem, como pixaim. agradáveis ao toque como meu corpo quando dói e a cai a água fria.

a escova guarda muito dos meus fios. toda sexta-feira junto-os todos, fazendo um grande cocoruto de pêlo algodoado.

sexta-feira é também o dia que o pai chega de viagem. é caminhoneiro e nunca escova os cabelos. gosta de se dizer o homem da família, ri bem alto demarcando sua existência na casa, em nossas vidas.

sento na beira da cama. o quarto não tem porta. da poltrona da sala me olha como me olham seus amigos quando aparecem para beber, como me olha o professor e o médico. o mecânico da bicicletaria e o padeiro.

aperto as pernas bem firmes e tento manter no rosto a suavidade de cada escovada. penteio até que o braço doa, até que o couro da cabeça doa.

uma escova cheia dos meus pêlos.

quando já é tarde da noite e a mãe deixou toda a louça limpa, chão limpo, carne curtindo nas bacias com banha, alho e sal, do jeito que o pai gosta, viro para dar boa noite, mãe.

o pai ronca alto e um cheiro acre de álcool envolve a asa pequena.
agora todos já dormem.

retiro um a um meus pêlos da escova, enrolo meu cocoruto. o maior que já fiz. o pai sempre diz que uma mulher com pêlos é uma mulher nojenta.

pego a lâmpada que escondi entre as calcinhas e a esmigalho firmemente, enquanto ouço na cabeça de choros abafados de mamãe, o som grave do punho do pai em suas costas e o engasgo profundo e seco.

esmigalho até que seja puro pó em minhas mãos que sangram, puríssimas.

arranco a carne da bacia e estraçalho um pedaço, recheando-a com meu cocoruto de pêlos e vidro moído.

recito baixinho as palavras mágicas de mamãe: só teremos paz quando ele morrer.
fecho a carne, como costurando a minha.
beijo o pedaço ensanguentado.

eu sou judas.
salomé.
me beija.
me come, papai.
*


[fiz esse texto  no laboratório de escrita criativa para mulheres (cis e trans), que aconteceu na caixa cultural em fortaleza, de 06 a 10 de março/2018. a imagem que  aqui ilustrada é a capa da zine que fizemos como culminância do curso; o título faz parte do caderno-goiabada (livro de prosa poética que publico ainda este ano pelo selo aliás) e usado num dos exercícios propostos.]

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