sábado, 7 de outubro de 2017

sereia no copo d’água


leio ‘changing diapers’
cada verso me detém tua visão bebê nadador
– nadadora? nunca terá um sexo que te definha
o índio geronimo me aparece enquanto agonizo tua visão antes da queda

por que voa, tupã?
pra onde quer ir tão fundo n’água
se meu corpo te prende todo líquido?

voaríamos muito além essa cidade submersa
casinhas com jabuticabeiras, bancos cimentados
galinhas que ciscam a generosidade e nos dão seus filhos-ovos

te dei meus melhores ovários
- o melhor é o desejo, essa vontade e potência

me foge água, sangre
pedaços por entre as pernas
essa dor mais dilacerante que o parto da tua irmã

nada por entre os meus fundos num rasante até o fundo da privada
tão longe parece o esgoto e visto daqui em nada parece uma roseira
meus olhos são seu líquido amniótico
seu mergulho que me dói o corpo torna real o dilaceramento que brota
do coração. rasga o ventre da tua mãe, tupã!
rasga esse corpo ex-prenhe que te prende!

“ausência de batimentos cardíacos”
o que faz teu coração que não bate
e me bate, me bate?

ponho as mãos no coração
só posso escutar o naufrágio correndo pelos olhos
- escuta! minhas pernas bambas te esperam

te vejo o mergulho, bebê translúcido-encarnado
tem o tamanho da palma da minha mão mais bonita
teus braços e pernas incompletos dão forma
ao último painel do jardim das delícias
se fecho o tríptico o mundo se me fecha
fecho os olhos
choro tão alto a convulsão
mãe no copo d’água

afundo a mão no sangue
minha vagina dói tanto
- oxalá pudesse conceber a poema mais feliz de se dizer boceta
te afundo a mão no sangue
até as mãos o todo sangre
bebê na palma da minha mão mais bonita
te mergulho nessas lágrimas o copo mais cheio

não te dou a vida
também me a perco
os peitos se me derramam
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e você é o pássaro que me foge o corpo-jaula
eu-jaula não me converto pássaro
abro a boca

tupã. tupã. tupã.

por que me voa se tenho os pés pegados na terra árida?
por que me voa se a jaula se me fecha?
ardo, rasgo a noite, atravesso o dia
e deliro que frutos muito amargos se misturam às minhas vísceras em maus-augúrios
abro a boca

tupã. tupã. tupã.

metade de mim morre quando homédico me diz aborto
metade de mim morre com tua visão de mergulhador da privada

e voa, voa pássaro coração-de-pedra. nada desse corp’água
nada mais que até o fundo
nada mais que longe das crianças que sonham leites
nada mais que ao largo da palavra mãe

você me deixa. você me deixa. você me deixa.

o delírio me cobre os olhos
estou dormindo?
não temos a casinha, as jabuticabeiras, as cabrinhas

não te seguro mais
mergulha e voa até o fim
nada mais que até o fundo
desaparece o corpo, eu também sou essa dissolução
a sombra da tua sombra

a grande mãe da noite vem me visitar
estou dormindo, mãe?
que posso ser agora se não posso te ser a mãe?
a mãe imensa abre a boca da noite
é um copo
eu sou sua mulher

sereia no copo d’água
*

[publicado originalmente no Mulheres que Escrevem]

reprodução de desenho de rupi kaur

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