sábado, 18 de abril de 2015

de comer e saltar cambalhotas sobre o muro, uma água morna pra me cobrir os cornos



escolho maçãs entre as muitas fileiras e carrinhos e as muitas gentes que vão ao mercado sábado de manhã. escolho maçãs as mais escuras e não argentinas, escuras por fora, não por dentro que ainda não se pode ver. seria bom morder a maçã e só então decidir-se a levar ou não levar, mas não é assim que segue a lógica dos mercados e nem mesmo das feiras. enquanto danço os dedos com uma maçã não tão vermelha, não tão triscada lembro que hoje era dia de feira agroecológica. detenho-me por um instante, deixo as maçãs rolarem na esteira e subo 5 ou 6 quadras em busca de frutas muito mais frescas - é a promessa não se sabe se a realidade. mas não, lembro do homem muito triste que fica no caixa e o procuro entre os amontoados. está lá. fico remexendo as maçãs e penso nessa fronteira que nos separa: um homem triste com vocação para alegre e eu um benedetti, alegre com vocação para triste, ou tudo o contrário se é verdade, a ordem dos fatores não altera o resultado.
(lembro-me dos muros e fronteiras que falava o homem num português aturdido, num jeito sem-jeito, como quem acabasse de sair da cama e tivesse uma plateia morna à sua frente. sem-jeito como a mulher que nos ciceroneia a todos, com tanto atraso e dizendo que iremos nos atrasar ainda mais. tudo aqui é um atraso, a palestra sobre como se controla a violência em medellín e no recife e eu nem lá; a criança que quer brincar e gritar e dizer em alemão eu sou maravilhosa; a poeira que se espera espanar para dar brilho às coisas todas. e tudo tão sem brilho, a mulher que chega tão sem-jeito arrebatada como quem tivesse acabado de deixar a cama e nos deixa suas imagens em projeção e os olhos teimam em ler essa anti-ética e lemos todos ‘minha muito querida c.’ e tantas vezes a palavra muro e fronteiras. essa fronteira que se nos coloca o palco, um homem grande e desajeitado numa cadeira desajeitada e o vão terrível entre o tablado e o chão, entre o chão e nossas cadeiras confortabilíssimas que ele tem razão, quase dormimos e não se pode ouvir mais nada além de um boa noite, muito embora seu desajeitamento diga boa-tarde. ainda é tarde para eles, numa praia com algum nome auspicioso, num quarto de um hotel mal-cheiroso onde do banheiro se pode ver os telhados e calhas e canos e onde tudo isso vai dar. eu poderia ter dito a minha fronteira, essa que nos separa a boca, o corpo, as bundas tão fofinhas e famintas como laocoonte e os filhos esfaimados. mas penso antes na avenida do hotel essa fronteira entre uns miseráveis do morro, não uma favela clássica, mas ainda uma favela e sua gente que desaba com a chuva, santa terezinha, e na outra margem o hotel e sua gente tão rica, tão requintada. mas nada digo, quero me aninhar ao homem ao meu lado que acaba de chegar da frança e da frança eu só sei o que me chega pela gallimard e aqueles biscoitos e a torre e tudo isso que li, ontem, ano passado, sabe quando as fronteiras da minha memória. não digo coisa, mas abraço o homem quando todos se vão e ele diz que sim, espera que eu esteja logo num país de língua enrolada, de cujos músculos da língua vão acostumar-se a mim. eu espero mais, é claro. e vou embora sem dizer coisa, como quem fica em cima do muro ajeitando o melhor salto.)
6 maçãs não devem ser lá tão caro e então posso passear pelos renques e olhar toda a gente e que cara tem seu sábado. a velhinha com goma de tapioca, presunto e queijo, uns homens muito musculosos e umas cervejas, uma mocinha com recheados e refrigerantes. as mãos do homem triste, os olhos do homem triste, o crachá com seu nome destino, sim, joão, você deve ter a cabeça arrancada, mas meu nome é casa e não salomé. fico na fila do homem triste, todas as outras vazias e é bom assim, esperar, contrariando a mim mesma e a roupa que me espera atrasada, um livro que me espera atrasado, este texto que não me espera que há ainda muito a reverberar quatro ou cinco dias pegada na sala, dois dias pegada no chão do hotel, na cama do hotel, no banheiro do hotel onde se pode ver cada entranha de cimento e cal. uma água morna pra me cobrir os cornos. trazendo um pouco de alegria à essa vidinha tão besta de quem só registra preços pra o patrão, sensualizo com a tristeza de joão, como coisa que se não faço dói-me o corpo, ele diz que meu sorriso melhora a sua manhã tacanha. e eu prometo voltar às 5 e um quarto pra que se melhore também a noite. mas não volto que não posso lhe arrancar a cabeça, uma fronteira entre meu nome casa e o nome salomé.

2 comentários:

Saulo disse...

versos desatados, na companhia de outros versos, que as linhas são o verso delas mesmas; e, de modo semelhante, mas nunca igual, maçãs desdobradas em mordidas sem preço.

Primeira Pessoa disse...

toda prosa, a nina.

beijo grande do

r.